segunda-feira, janeiro 29, 2007

Denúncia ou prisão


Carlos Fiolhias*

“Scoop”, o título do último filme de Woody Allen, pode ser traduzido por “cacha” (segundo o Houaiss, “notícia importante publicada por um órgão de imprensa antes dos demais”). Na fita, a cacha é dada a bordo de uma “barca da morte”, que evoca Gil Vicente. A fonte é uma secretária executiva que está obviamente morta (é a única maneira de ir parar à barca!) e o receptor é um jornalista também morto. E a notícia é mesmo de caixa alta: um ”serial-killer” londrino, responsável pela morte de uma série de mulheres da vida, assim ao jeito de Jack o Estripador, é nada mais nada menos do que um filho de um lorde inglês...
Um bom jornalista nem morto consegue resistir a uma boa cacha. Nadando no “rio do esquecimento”, à socapa da Parca, o repórter regressa ao mundo dos vivos. Materializa-se, por artes mágicas, no interior de uma caixa, onde um velho mágico (Woody Allen, ele próprio), desmaterializava uma jovem espectadora do seu “show”. Ela é uma rapariga bem material, uma jornalista americana (Scarlett Johansson, a ninfa preferida do realizador), que, de posse da pista, se lança num intrépido trabalho de investigação.
Esta introdução, tal como um “lead”, serve para aguçar o apetite para o filme. E não só: também para aguçar o apetite para um livro saído há pouco entre nós sobre o segredo profissional dos jornalistas. Em “Scoop”, a fonte e o jornalista intermediário estão mortos (a primeira mais do que o segundo), pelo que não correm qualquer risco. Como Woody Allen, esse judeu-ateu que no filme declara “ter nascido no judaísmo, mas se converteu ao narcisismo”), fez questão de lembrar numa entrevista recente: “Uma pessoa morre e pronto!” Mas a questão do livro é: como assegurar o direito ao sigilo a uma fonte que está viva mas receia pela vida? Ou melhor: como resolver o conflito entre o direito ao sigilo no jornalismo e o direito à justiça nos tribunais?
A obra intitula-se «Sigilo Profissional em Risco» e subintitula-se “Análise dos casos de Manso Preto e de outros jornalistas no banco dos réus”. É sua autora uma jovem jornalista da Lusa, Helena de Sousa Freitas. E é sua editora a MinervaCoimbra, dirigida por Isabel Garcia (o livro é meu porque ela mo deu!). A colecção em que se integra, denominada “Comunicação”, já vai em várias dezenas de títulos, escolhidos pelo jornalista e professor universitário Mário Mesquita.
Quem é Manso Preto? Um jornalista “freelancer” que se especializou em trabalhos de investigação sobre o tráfico de droga e que foi detido em 20 de Setembro de 2002 por não querer quebrar o sigilo profissional. Arrolado como testemunha num caso de droga em que eram acusados os famosos irmãos Pinto, e sobre o qual de resto ele nunca tinha escrito, afirmou à juíza saber que a Judiciária “encenava” operações de narcotráfico. Intimado a indicar a fonte da informação, Manso Preto recusou, invocando o Código Deontológico dos Jornalistas. O processo foi demorado – como é infelizmente normal entre nós – uma vez que só em 10 de Dezembro de 2004 foi divulgada a sentença: onze meses de prisão com pena suspensa por três anos. Quase onze meses depois, em 26 de Outubro de 2005, o recurso do réu era atendido no Tribunal da Relação de Lisboa, por os juízes considerarem “preponderante, no caso, o seu direito à manutenção do segredo profissional”. A fonte – hoje inspector aposentado – continua anónima…
É claro que a regra do anonimato das fontes é a excepção e não a regra. Os jornalistas António Granado e José Vítor Malheiros explicam no seu livro de título «Como falar com jornalistas sem ficar à beira de um ataque de nervos» (Gradiva, 2001): “A figura de off-the-record não existe para desresponsabilizar as fontes, permitindo-lhes transmitir o que quiserem à imprensa sem comprometer o seu nome. Ela existe para proteger a identidade das fontes quando existe o risco de sanções para a fonte e, paralelamente, existe um legítimo interesse público no conhecimento de uma dada informação”.
O livro de Helena Freitas conta casos ainda mais dramáticos do que o de Manso Preto, em que a história acabou mal para a fonte ou para o jornalista. Foi o caso do perito em armamento britânico David Kelly, informador da BBC acerca da guerra no Iraque, que se suicidou em 2003 depois de ter sido denunciado por um jornalista. Ou ainda a da corajosa Judith Miller, jornalista do “New York Times” e vencedora do Pulitzer de 2001, que cumpriu pena na Penitenciária de Alexandria, Virgínia, durante três meses de 2005, por não ter denunciado a sua fonte num complicado processo relacionado com uma espia da CIA (curioso é, tal como no caso Manso Preto, Miller ter sido chamada a tribunal sem ter escrito uma única linha sobre o processo em causa!). Na audiência final, a jornalista declarou, para que constasse não só nas actas mas nos jornais de todo o mundo: “Não estou acima da lei, mas tenho um dever jornalístico para com as minhas fontes. Se elas não puderem confiar nos jornalistas para garantir a sua confidencialidade, não pode haver uma imprensa livre”. A fonte neste caso não ficou anónima, pois ela autorizou a quebra de sigilo para libertar a repórter. Mas o ambiente insustentável entretanto criado na redacção levou a jornalista a deixar o jornal onde tinha trabalhado durante quase três décadas.
Tudo isto tem por fonte o livro da MinervaCoimbra, um trabalho no Curso de Pós-Graduação em Direito da Comunicação Social na Faculdade de Direito de Lisboa (o Prof. Jorge Reis Novais escreveu o prefácio). O livro foge ao perfil maçudo das teses académicas, sendo muito útil para todos os que se interessam por jornalismo, por direito e, em geral, por questões de cidadania e liberdade. Como escreveram vários jornalistas, artistas e intelectuais em defesa de Miller: “Prender uma jornalista num país democrático é mais do que um crime: é um descarrilamento da justiça.”

n'O Primeiro de Janeiro, das Artes das Letras, hoje

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