terça-feira, dezembro 27, 2005

O nome pelo som...

São estórias deliciosas e divertidas construídas através de “papelinhos” reunidos ao longo de quase três décadas pela autora, técnica numa farmácia de Côja. Mas é sobretudo um espelho do país interior, o que Manuela Sinde Filipe nos mostra no seu livro.

Paula Alexandra Almeida

“Senhor Dotor mandava-me ai da Farmasia um remédio para as lambrigas deitei uma aqui à dias pela bôca e nunca na minha vida me a conteseu uma coisa destas agora são pequeninas não durmo nada de noute com élas apicarem no rábo e na via por onde ourino e eu não posso asim andar quando eu queriei os meus filhos avia ums comprimidos grandes que até traziam o retrato déla por fora no papél agora com 74 anos e andar com este probelema e que não posso aturar esto faça me o favor de me desqulpar muito obrigada”.
São assim as “Estórias que fazem a história de uma farmácia”, da autoria de Manuela Sinde Filipe, recentemente lançado pela MinervaCoimbra. Estórias que retratam muito do interior do país e que representam um documento etnográfico de grande valor. Tal como se refere no prefácio, este é um livro que nos leva, numa época de mundialização, de novas tecnologias e da vivência da “aldeia global”, à vivência da “aldeia real”.

Saber de tudo
Durante quase 30 anos, Manuela Sinde Filipe trabalhou numa farmácia, em Côja, onde foi recolhendo “papelinhos”, “bilhetinhos”, onde em dias de mercado, os habitantes das aldeias vizinhas traziam as encomendas escritas. “Talvez poucos saibam que, antes destas novas, modernas e bonitas farmácias informatizadas, já existiu um espaço familiar que, além de aviar as receitas médicas - na sua maioria manipuladas, na altura -, era o local preferido para a actualização das conversas que hoje se vulgarizaram nos cafés”, refere a autora. “Era na farmácia que tínhamos a certeza de encontrar aquela pessoa que sabia tudo, ou quase tudo...”.
De mezinhas a bruxedos, de veterinária às vindimas, das lombrigas ao hemorroidal e “outras comichões”, tudo o farmacêutico tinha que conhecer e saber ajudar.
“Amigo Dr.... Agradeço envie aquela lavagem para o pénis pois só arde na ponta e retem a urina”, ou ainda descubra alguma solução mágica para “tomates nos jatos, játos nos tomates”.
Adivinhar também era exigido: “5 sacos para a sonda, uma bisnaga para lhe butar nas brilhas para não cecortar é cão a risca azul custa 7:00 e cualquer coisa, depois pago” ou ainda “uma embalagem de empelástros para pôre em sima de uma dóre, tem 10 i é deste tamanho, é janponêz ô Engeles não sai bem, antigamente costava 50$00 agora não sai”.

Espelho da realidade
Um livro que tem a sua parte engraçada, como reconhece Manuela Sinde Filipe, mas que espelha apenas a realidade, “a nossa realidade”. E o livro, sublinha, “não foi feito com intenção de fazer pouco das pessoas. Pelo contrário, tentei apenas mostrar às pessoas da cidade o que é o nosso interior que muitas delas desconhecem por completo. As dificuldades que as pessoas têm a vários níveis. Muitas das pessoas de quem provêm estes bilhetinhos nem a 4.ª classe têm. Escrevem em função do som das palavras”. E a obra de Manuela Sinde Filipe espelha precisamente a sensibilidade que um técnico de farmácia tem que ter para atender os pedidos, algumas vezes desesperados, de todos os seus clientes. E não só.
No final, a autora dedica um capítulo ao receituário médico, inteligível, claro está. E desde um medicamento chamado “Arganil 25” até “Ermelinda Encarnação uma grd”, há de tudo... como na farmácia.

n'O Primeiro de Janeiro

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