quarta-feira, outubro 25, 2006

Viagens pelo Brasil




As Edições MinervaCoimbra promoveram ontem, na Livraria Minerva, o lançamento do livro "Viagens pelo Brasil. Impressões de um Geógrafo. Memórias de um Reitor", da autoria de Fernando Rebelo. A apresentação da obra esteve a cargo de António Barbosa de Melo, cuja intervenção aqui transcrevemos:




“Com espírito de descobridor… viajando e conversando, observando e fotografando, quantas vezes tivemos os olhos marejados de lágrimas nesse país imenso e diverso, falando sempre a nossa língua comum, com simpatia e doçura.”
Fernando Rebelo, obra supracitada


1. Há anos foi tema de controvérsia a natureza da relação originária entre os portugueses, o Brasil e os brasileiros. Falavam uns de uma relação de achamento, outros de uma relação de descobrimento, para destacar ou a casualidade ou a intencionalidade desse encontro. Na história dos dois povos, Porto Seguro e os índios “aymoré” estariam ali por obra do mero acaso ou o encontro seria fruto de deliberada procura dos que da “ocidental praia lusitana” saíram seduzidos pelo desejo de “ver o mundo”?
Ao terminar a leitura do livro, que tenho a honra de aqui apresentar, pareceu-me poder concluir que a essa polémica faltara alguma largueza de vistas: haveria a considerar também nessa alvorada da história não só uma relação de encantamento dos portugueses pelo Brasil (de que foi precursor Pêro Vaz de Caminha) e, reciprocamente, dos brasileiros por Portugal, como também uma visível relação de enorme ternura entre os dois povos. Como diz no prefácio o Prof. Edivaldo Machado Boaventura, este “é um livro de demonstrada simpatia pelas coisas brasileiras, escrito pelas ressonâncias da descoberta pessoal do Brasil com a pena da admiração intelectual”, concluindo “os achados do professor Rebelo … são tanto geografia como poesia”.
De facto, a sensibilidade cultural do autor ou, melhor, dos autores converteu um livro de viagens num notável exercício de sentimentos e de expressões da fraternidade luso-brasileira, que pouco ou nada têm a ver com a tradicional retórica jogada nos tabuleiros da política ou da diplomacia. É uma fraternidade que é laço entre pessoas de carne e osso, que assenta na mútua compreensão humana, que se reforça por uma riquíssima história comum, partilhada pelas elites e pelo povo miúdo dos dois países ao longo de cinco séculos, e que se volta hoje para o futuro perscrutando os caminhos da história universal e da história dos povos de língua portuguesa, com a consciência crescente da importância da nossa cultura comum para a humanidade que aí vem chegando, dia após dia.

2. O título exprime de modo feliz e rigoroso o conteúdo significativo do livro. Reúne crónicas publicadas ao longo dos tempos no jornal “As Beiras”, através das quais o autor foi reconstituindo uma viagem cultural através da maior parte dos Estados Federativos do Brasil, desde São Paulo, Estados do Nordeste, Estados do Norte, Distrito Federal e Estados do Centro até aos Estados do Sul. O percurso seguido na obra define o itinerário de uma viagem imaginária, como nos diz o autor, reconstruída a partir de nove viagens reais que, entre 1996 e 2005, em férias ou ao serviço da Universidade, realizou por todas as terras de que nos fala. É seu desejo confesso “mostrar um Brasil que o encantou e que é pouco conhecido em Portugal”, sem deixar de referir pormenores observados nos 16 Estados que foi visitando.
O tema permanente é o homem brasileiro, que “fala o português com açúcar”, que veio das sete partidas do Mundo, ora conversador e aventureiro (José do Dão, em Olinda), ora personalidade das histórias de Portugal e do Brasil (como José Bonifácio de Andrada e Silva), ora motorista e cicerone ou guia (que nos aparece sob vários tipos e em muitas cidades), ora poeta e artista (como Vinícius, Jobim, o bar, o cafezinho e a “garota de Ipanema”), ora cônsul honorário de Portugal (afinal um antigo camarada de armas do autor), ora naturais de Coimbra (como o proprietário de campos de arroz em Pelotas ou a empregada de joalharia no Rio de Janeiro), ora guia poliglota (como o da viagem pelo rio Amazonas), ora o motorista que se recusa a ser guia (como o que levou o casal ao Jardim Zoológico de Manaus, administrado por militares, por ter sofrido sérios agravos durante a ditadura, ou como o do Rio de Janeiro, que, sensível à “matança dos meninos”, não quis aproximar-se da Igreja da Candelária, e, depois, confiou a um amigo a função de guia na visita ao Maracanã e ao “balneário de Pélé”); ora eclesiástico ilustre de origem portuguesa (como o Bispo de Belém do Pará) …
As paisagens e as cidades, muitas vezes, surgem-nos como relevantes na pena do geógrafo por serem espaços povoados de pessoas e de protagonistas de uma história concreta, que é enunciada em traços breves mas sugestivos. Até as características económicas duma região nos vêm enredadas, aqui e ali, numa humanidade, mais ou menos simpática (os barões da borracha, os barões do café, os barões da carne, a “pequena Madeira”, os gaúchos, os açorianos de Florianópolis). Outra nota interessante é a frequente comparação, nomeadamente geográfica, de cidades e terras do Brasil com cidades e terras de Portugal (Pelotas com Aveiro, Espinho ou Figueira da Foz, porque aí se seca a carne de bovino do mesmo modo como nestas nossas terras se seca ou secava o bacalhau). Poderia destacar muitas coisas mais: a caracterização de Belo Horizonte, a 3ª cidade do Brasil, como cidade de características europeias e portuguesas; Congonhas do Campo e a sua religiosidade próxima da do Norte de Portugal; Ouro Preto, a capital imperial, depositária das obras do “Aleijadinho” e de igrejas barrocas recheadas de talha dourada e, desde 1980, Património Cultural da Humanidade; a descrição de Brasília e homenagem aos “Candangos” concretizada na Praça dos Três Poderes; a qualificação de Manaus, como sítio cuja visita é “para um geógrafo a realização do seu maior sonho profissional”; a viagem de avião entre Brasília e Manaus e o discurso, apesar de tudo positivo e optimista, sobre o estado de coisas naquele “inferno verde”: Manaus é “uma grande cidade no meio de uma enorme floresta ”sempre verde”, “ombrófila”, “equatorial”, cercada de floresta e de água por todos os lados, “uma floresta fortemente atacada pelo homem nos seus limites” mas onde a clareira “não destruiu tudo”, e que ”cresce harmoniosamente deixando belos espaços florestais” (como mostra o Parque do Mindu)…





3. O geógrafo foi quem mais escreveu no livro e que sempre o fez aparentemente empenhado na procura da alma das cidades. O reitor, esse falou menos, mas não deixou de promover a sua Universidade junto do meio universitário brasileiro e de participar em acções de excelente nível com muitas e grandes universidades do Brasil. Neste aspecto, o livro prossegue a linha trilhada por obras do autor anteriores a esta, publicadas em Coimbra, mas sem deixar de lhe aditar notas pessoais interessantes sobre muitas figuras de prestígio das universidades brasileiras.

4. No prefácio Edivaldo Boaventura lembrou a propósito, muito justamente, a Viagem à Itália de Goethe, ele aliás também geógrafo. A mim foram-me acudindo ao espírito, à medida que prosseguia a leitura, o livro do célebre jornalista Raymond Cartier, As quarenta e oito Américas, sobre uma sua peregrinação através dos EUA, que li e de que muito gostei nos meus tempos de estudante, o volume de Erico Veríssimo, Gato Preto em Campo de Neve (1941), que regista as impressões do grande escritor brasileiro durante a viagem que fez como conferencista pelas universidades americanas durante três meses, e a obra do intelectual português Fidelino de Figueiredo, Ideias de Paz (1966), também ele um apaixonado pelo Brasil e geógrafo licenciado pela Faculdade de Letras, que nela regista reflexões de uma sua viagem aos Estados Unidos já nos fins da vida.
Mas a maior evocação que me veio ao espírito está no recente ensaio de George Steiner A Ideia de Europa (Gradiva, 2006), nos pontos em que o filósofo trata no seu discurso do axioma segundo o qual a Europa foi e é percorrida a pé, explicitando que “os homens e as mulheres europeus percorrem a pé os seus mapas, de lugarejo em lugarejo, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade. O mais das vezes, as distâncias têm uma escala humana, podem ser dominadas pelo viajante que se desloque a pé, pelo peregrino até Compostela, pelo promeneur, seja ele solitaire ou gregário”.

5. Não posso deixar de registar, por fim, o profundo respeito e simpatia que Fernando Rebelo manifesta quando evoca, em diferentes passos, os Mestres da Escola de Geografia de Coimbra já falecidos ─ os professores Doutores Amorim Girão, Fernandes Martins e Pereira de Oliveira. É uma atitude que revela laços cuja continuidade constitui sinal e símbolo da excelência humana das escolas que formam o corpo e a alma da Universidade de Coimbra…

António Barbosa de Melo
24 de Outubro de 2006

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