Realizou-se no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto uma sessão de apresentação do livro O CHÃO DA RENÚNCIA de Aida Baptista.
A sessão, que contou com a presença da autora, realizou-se no âmbito do Congresso "Ensino de Português nas Universidades da América do Norte: Situação e Desafios", que decorreu naquele Departamento entre 16 e 18 de Outubro.
A apresentação esteve a cargo de Ilda Januário, cujo texto aqui reproduzimos:
Uma manta e uma passadeira para (sobre)viver no Chão da Renúncia
Cara Aida,
Daqui para a minha terra
Tudo é caminho e chão
Tudo em crónicas e prosas
Escritas por minha mão.
Caros congressistas, senhoras e senhores,
Foi em 2004 que a Aida Baptista, autora do livro que lançamos hoje, O Chão da Renúncia, me pediu para fazer parte do painel do lançamento, no Sardoal, do seu primeiro livro, Passaporte Inconformado. Foi um prazer inesperado ter sido por ela convidada para fazer a apresentação deste seu segundo livro em Toronto, o que faço com o maior gosto e, espero, com alguma perícia. Não a perícia do escritor, nem a do crítico literário, nem sequer a da conterrânea angolana, mas sim a da amiga e leitora fiel das suas crónicas no semanário de Toronto, O Post-Milénio.
Na verdade, estava muito curiosa para ver como ela iria reunir as crónicas escritas em Angola, e sobre Angola, para efeitos de um livro. São ao todo 43 crónicas, revistas e prefaciadas pelo nosso melhor escritor luso-canadiano de língua portuguesa, Eduardo Bettencourt Pinto. E devo confessar que, assim reunidas e prefaciadas, com um poema dele sobre África, me deslumbraram pela variedade e a coerência de temas, ideias e sentimentos descritos.
Para citar Manuela Marujo, que também fez parte desse painel no Sardoal, acho que a este livro se aplicam as suas palavras de então, que cito:
Ela capta, de modo particular, as alegrias, a nostalgia, o sofrimento, os fracassos e os sucessos de um povo (...). As suas crónicas mais pessoais são umas vezes irónicas, outras divertidas, revelando ainda outras, uma mulher sensual, amante apaixonada da vida e das pessoas. São sempre escritas com grande beleza, inteligência e sensibilidade.
A crónica foi referida no texto de apresentação do Passaporte Inconformado pelo Álamo de Oliveira nos Açores, como sendo um género literário condenado à efemeridade que, dependendo de como é escrita e abordada, poderá ganhar direito à intemporalidade. Assim o reconheceu a editora MinervaCoimbra, ao publicar este segundo livro de crónicas de Aida Baptista. Para usar uma metáfora muito feminina e intimista, emprestada à Aida, uma crónica é um retalho, as sobras do tecido existencial que se deitam na cesta da escrita. Era hábito de se aproveitarem as sobras de tecido não usadas, na casa de família da autora.
As sobras dos dias (the remains of the day), alinhavadas em quatro páginas de manuscrito, depois de seleccionadas e de levarem os devidos cortes, são passadas à “máquina computadora”. A peça resultante é expedida para “obedecer à periodicidade de um compromisso com um órgão de comunicação social” (Álamo). Ela poderá vir a ser um texto memorável e duradouro, ou não, dependendo do tema, da maneira como é tratado, da inspiração e da qualidade da escrita do cronista.
Um dia, contou-nos a Aida em “Velhos são os Trapos”, há mais de trinta anos, confeccionou uma manta de retalhos tradicional que a acompanha para todo o lado. Nessa altura, em Portugal e depois na Finlândia, Aida não tinha ainda descoberto a sua enorme habilidade e gosto para redigir crónicas. Anos depois, fabricou um saco de viagem, com cinquenta “sobras” da sua vivência no Canadá, para nele carregar o seu passaporte inconformado, sem, cito, “imaginar o que o tear do futuro lhe reservava”. Agora sabemos que foi uma passadeira, para melhor calcorrear o chão da renúncia.
Ela própria utilizou esta metáfora na primeira crónica, “Pedaços de Mim”, cito:
À medida que for recolhendo das paredes os retalhos que deixei, juntá-los-ei um a um para completar a passadeira que se tece caminhando por todos os lugares que até hoje me prenderam.
Que a escrita, a costura e a urdidura têm muito em comum, disso não resta dúvida... Contudo, as analogias e metáforas femininas, que percorrem as crónicas da autora, não deixam de a remeter para a universalidade e a intemporalidade de quem urde e talha textos com a autoridade de mestre.
Neste livro, Aida Batista fala-nos de Angola. Mas foram vários os chãos que aí pisou, (nenhum deles asfaltado), muitas das vezes soterrados na lama, na poeira ou, ainda, na areia da praia da Baía Azul. É extensa a lista de caminhos que se entrecruzam sob os seus pés e ela nos leva a atravessar com humor, acuidade, sentido crítico, poesia e sensualidade. Cito outras expressões que empregou ao longo do livro: o chão da infância e das raízes ancestrais; do atraso estrutural; o chão do trágico-cómico, da desigualdade, dos amanhãs sem futuro, do imprevisto, da discórdia e do crime, minado pelos liames da ira; das ilusões e dos reencontros; e por fim o chão da aceitação plena, ou da falta dela, em que o chão da renúncia cruza com o da denúncia, feita com humor e serenidade.
O padrão colorido da passadeira urdida a partir das crónicas é coerente e deslumbrante. O chão da renúncia torna-se não só transitável, como surpreendente e gratificante. De repente, damos por nós a esquecer as inconveniências da viagem, num país em que domina a corrupção e o subdesenvolvimento, para entrarmos no dia-a-dia de quem escreve, com talento e discernimento, sobre o lugar e as suas gentes, incluindo alguns angolanos da diáspora, grupo a que ela pertence.
Visitamos um quotidiano de dois anos visto sob várias facetas: a da professora e dirigente do Centro de Língua Portuguesa de Benguela, inaugurado em 2003; a da mulher que vai ao encontro da sua infância e juventude, e a da dos seus filhos; que descobriu a sensualidade e o amor em Angola e lá constituiu família, e a da expatriada que regressou à terra esperando fechar um ciclo de vida, ou enrolar “o último fio da meada”, sem o conseguir, afinal. Ao sair de Angola pela primeira vez, na casa dos vinte, deixou para trás toda uma vivência, que, excluindo o casamento malogrado, tinha nela estampada o carimbo de “paraíso perdido”, marca que lhe vaticinou para sempre, como inconformado, o seu passaporte de viajante.
Para além da passadeira de crónicas que trouxe consigo, a Aida alude a uma manta de afectos que lá deixou, tecida nos bancos do Centro de Língua, com os alunos, o pessoal e outros elementos do povo, com quem cultivou mais de perto – empregadas domésticas, porteiros, os cambistas de rua, etc. Foi comovente como um dos estudantes da Aida, num poema por ele redigido, associa o A de Angola ao A de Aida, pela via do amor à língua comum:
Aida, não é você!
É um nome no português das nações reunidas
Uma leitura atenta revela que o título, Chão da Renúncia, descreve o âmago da realidade dos personagens, apareçam eles designados por nome ou não, desde a narradora, ao povo sofrido e resignado. É na verdade esse o grande tema que rima com outro igualmente importante, o da Denúncia.
A autora dá-nos a entender, de maneira visceral, e onde não reina senão o propósito da escritora atenta, sensível e arguta, da mulher em busca das suas raízes, o desconsolo de constatar que a relação entre Portugal e Angola continua a ser disfuncional; que a burguesia branca foi substituída pela negra, “os grandi da cidade”. Como aconteceu noutros países descolonizados, os “grandi” pouco mais sabem do que repetir e ampliar os erros da entidade colonizadora, desde a “chica-espertice”, à corrupção e ao amor ao luxo e às despesas de ostentação, até ao gosto pelos “corredores da intriga”, em vez da verdadeira governação e da elaboração de políticas “a partir do terreno”. Em particular, o terreno dos musseques, de casas de adobe e de terra batida, onde reina o HIV, a cólera e a mortalidade infantil, por lá viverem as hordas dos desenraizados provenientes das zonas rurais, onde meninos tomam conta de bebés, sem esperanças que um Pai Natal os recompense ao fim do ano. Os meninos que nos olham da belíssima capa de Marcolino Candeias.
Quero salientar a crónica enigmática “Violação inviolável”, que me parece emblemática da vivência dos angolanos, incluindo a dos expatriados. Afigura-se-me representar não só a face do relacionamento desonesto entre homem e mulher, como entre os intervenientes numa relação de poder, entre habitantes e nação. O povo, ou todo aquele/a que se encontra na mó de baixo, poderá ser autêntico, sábio e resignado, mas vê-se forçado a viver de expedientes, mesmo do roubo, depois de ter passado por todos os graus do desenrascanço. A burguesia, essa, usa modos cavalheirescos como meio para atingir a gratificação pessoal, fazendo uma governação sem alma da casa Angola, “onde a revolução prometida se mantém letra morta”. Mas a personagem feminina, em vez de debandar e esquecer o local onde foi cúmplice da sua própria violação, volta à casa e propõe-se a comprá-la e a redimi-la, a insuflar-lhe alma. Ao terminar a leitura, não duvidamos que o vai conseguir...
Por fim, e ainda usando a metáfora do amor erótico, quero ainda salientar a crónica final, a que Aida recorre para entender, e dar a entender, o seu relacionamento com o país em que se tornou mulher. Já havia feito algo de semelhante relativamente à história da língua portuguesa no Passaporte Inconformado, com “Dormiu com eles na cama”, que lhe valeu o comentário de Álamo, cito: “É uma preferência escrita que Aida Baptista domina de forma incomparável”.
Mas esta é apenas uma leitura deste conjunto de crónicas. Como qualquer bom livro, ele presta-se a várias leituras, onde - em prosa poética e intimista, sem deixar de ser rigorosa, contundente e humorística -, se sobrepõem, o microcosmo do dia-a-dia, da dor e da alegria, das partidas e das chegadas, com o macrocosmo do relativismo cultural, da mundividência, dos afectos repartidos pelos paralelos e meridianos da memória e da história. Obrigada, e parabéns querida Aida!
Ilda Januário, Toronto, 16 de Outubro 2008
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