quarta-feira, junho 11, 2008

A Geografia Física de Portugal na vida e obra de quatro professores universitários


As Edições MinervaCoimbra promoveram recentemente o lançamento do mais recente livro de Fernando Rebelo, “A Geografia Física de Portugal na vida e obra de quatro professores universitários. Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins e Pereira de Oliveira”, numa sessão que contou com a presença de docentes, alunos e de familiares e amigos do autor e dos homenageados.

A sessão contou com intervenções de Carlos Ascenso André, presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, local onde decorreu o lançamento, de Lúcio Cunha, presidente da Comissão Científica do Grupo de Geografia da FLUC, e de Isabel de Carvalho Garcia, das Edições MinervaCoimbra e do próprio autor.

Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins e Pereira de Oliveira, são considerados como quatro dos mais importantes professores portugueses de Geografia do século XX, razão que levou a Isabel de Carvalho Garcia a congratular-se pela edição de um livro “em que quatro vultos de elevada craveira intelectual e humanista ficam assim com um registo para a nossa memória futura”.

Para a editora “este livro tem um significado muito especial”, salientou. "Não tive o privilégio de ter como professor nenhum dos ilustres aqui citados, sei que marcaram de maneira mais ou menos profunda milhares de jovens estudantes e várias gerações, mas tive o privilégio de privar de perto com o Prof. Pereira de Oliveira de quem guardo gratas e saudosas recordações”.

Pereira de Oliveira era, afirmou, “cultural e cientificamente superior, preocupado com o homem e com o mundo. Tive a felicidade de poder usufruir da sua presença e companhia no Rotary Club de Coimbra. Defendia as grandes causas, aconselhava com mestria, simpatia e sabedoria e sofria com as injustiças. Verdadeiro, sensível, humanista, profundo no sentir e defensor de grandes causas, é assim que o irei recordar”, concluiu, manifestando ainda o seu tributo e admiração por Amorim Girão, Orlando Ribeiro e Fernandes Martins.

A apresentação da obra esteve a cargo de António Ferreira Soares, cujo texto aqui transcrevemos:

“Um dos poetas da minha preferência, e não posso negá-lo, é Miguel Torga. É dele o verso com que me apresento diante de vós: “Peço-te vida, que não me leves tudo. Deixa-me um pouco do meu sonho… deixa-me recordar o que de outros em mim está. Esta é a Vida quando consciencializamos o que da vida já vivemos”.

Cheguei a esta Universidade de Coimbra era Reitor, Magnífico como ainda hoje se intitula, o Professor Doutor Maximino Correia, da Faculdade de Medicina. Cinquenta anos volvidos, foi o meu último Reitor nesta mesma Universidade, o Professor Doutor Fernando Rebelo, da Faculdade de Letras. Com ele, Amigo e Colega, cristalizou a parte do meu tempo passado aqui, no que é hoje o Departamento de Ciências da Terra desta Universidade.

Não sou geógrafo — já todos aqui o sabem. O que sei de Geografia foi o que os geógrafos, meus amigos, fizeram o favor de me ensinar. Mas, um dia, por desafortúnio meu, para afirmação de uma universidade que se desenvolvia, fiquei responsável, durante um muito longo ano, por um Departamento de Geografia. Fui nesse tempo o único professor graduado a ensinar uma disciplina de Geografia Física nesse Departamento. Li e reli Tricart – Princípios e Métodos da Geomorfolologia (1965); descobri King - Morfologia da Terra (1962).

Agora, no tempo em que os meus olhos reclamam quietude, leio mais devagar e com muito mais vagar. Por isso e pelo que sempre vou aprendendo, agradeço ao Professor Fernando Rebelo mais este seu livro, singular, no todo da sua obra. Mas não me esqueço que sou geólogo e ensino coisas de Geologia razão porque na esteira do seu Professor que foi Alfredo Fernandes Martins, recordo o Mestre Professor Doutor Anselmo Ferraz de Carvalho, Professor de Geologia nesta Universidade de Coimbra e que ensinou Geografia nesta Faculdade de Letras. Outros tempos… Grandes eram as vontades…

“Um contra o mundo, é pouco.
Mesmo que seja louco,
É muito pouco ainda.”
(Miguel Torga)

Professor Fernando Rebelo agora neste seu livro cumpre o destino do professor que consciencializou a sua mestria por ter aprendido e guardado memória de quem foi e com ele praticou o ministério de ensinar. São quatro as figuras que retrata, pelos olhos de quem retrata. Três foram amigos de nossos convívios; o outro, o mais velho, dele recordo apenas a sua figura – um pouco baixo, um pouco magro, de fato escuro e com olhar donde ressaltava tranquila obstinação. Era o Professor Doutor Aristides de Amorim Girão, julgo que o primeiro doutorado em Geografia nas universidades de Portugal. Nesse tempo, em 1922, pontificava em Geografia e pelo que dele nos deixou Orlando Ribeiro, o Professor da Universidade de Lisboa, médico de profissão, Dr. Francisco Xavier da Silva Telles, arguente no doutoramento de Amorim Girão. E conta-nos Orlando Ribeiro:

“O candidato trazia a bagagem das observações de campo que Silva Telles nunca fez, e de um conceito diferente da geografia, haurido principalmente na escola francesa, enquanto a formação do arguente era mais alemã e anglo-saxónica. Defrontaram-se, ou antes, confrontaram-se com a maior serenidade e elegância”.

Disse-me, muitos anos depois, Amorim Girão: “Creio que não fiz má figura, mas a impressão que deixou Silva Telles foi excelente e comportou-se comigo com toda a generosidade”. Orlando Ribeiro foi parco ao retratar os colegas de Coimbra, de quem era inquestionável amigo. Alfredo Fernandes Martins no sentir de Orlando, foi um notável geógrafo, amigo e companheiro de trabalho em Portugal e Moçambique.

No concurso de Fernandes Martins para catedrático, Orlando Ribeiro fez saber ao público e à Universidade: “Se Fernandes Martins não era o mais operoso geógrafo português, era o mais talentoso, pois reunia a minúcia e rigor da observação ao gosto de uma elaboração bem travejada e a um estilo vibrante e emotivo, um tanto — às vezes mesmo muito — literário, sem deixar de ser cientificamente exacto”.


Tive o privilégio de trabalhar com ambos, numa Comissão onde também estavam Raquel Soeiro de Brito, Mariano Feio e Ilídio do Amaral. Procurava-se então, por incumbência do Ministro, organizar uma proposta de reformulação do ensino da Geografia (Licenciatura em Geografia) nas universidades portuguesas. Passados que foram meses de trabalho, a Comissão, por unanimidade, decidiu apresentar a sua demissão. Coisas da vida que a vida nos faz lembrar.

Fernandes Martins foi alto e magro para a média do português e, volta não volta, lá usava a boina basca a culminar a sua rara elegância descuidada. Quando o vi pela primeira vez, nos anos 50 do século passado, passeava-se, gabardina cingida, varinha debaixo do braço. Ali estava, pensei eu, um último cavaleiro do rei Artur… Sim, pelo que depois conheci, um último cavaleiro na liça académica da Universidade. A sua espada era a palavra e aquela teimosia de vime que não se deixa arrancar. Coimbra era a sua cidade e o Mondego o seu rio. Coimbra não era do Rio, como o Mondego não era da cidade. Eram apenas entidades que os povos conjugaram a olhar os campos.

Um dia, o Professor Fernandes Martins, telefonou-me – tinha urgência em falar comigo; conversa que não podia fazê-la pelo telefone. E lá marcou a manhã no pátio da Universidade, junto a El-Rei. A olhar o que dali se vê, falou do rio, de Santa Clara, da Rainha Santa, do laranjal que ainda resistia, das lágrimas de Inês e, sobretudo, dos contrastes que a Geologia emprestava ao correr das paisagens. Não me lembro o que lhe fui respondendo; talvez nada ou muito pouco. Via Coimbra por outros olhos. Só, quando já nos dirigíamos de regresso à Porta Férrea, num sussurro, não fosse o rei ouvir, atirou: preciso de si… tem de me ajudar a arrumar a Geografia… E fui membro dos júris de provas que depois se fizeram. Esta foi a minha manhã com o Professor Fernandes Martins. As suas teses sobre o Baixo Mondego e o Maciço Calcário Estremenho conhecia-as bem.

O Professor Orlando Ribeiro era outro. Tinha o gosto pelos caminhos e por pensar razões que a razão, de imediato, julgava. Com ele, com a Professora Suzanne Daveau e tantas vezes com Fernando Rebelo, corremos a Lousã, o Maciço Marginal, da Aveleda ao Buçaco, procurando julgar rechãs, superfícies de erosão, calhaus que se espalhavam por encostas e que foram erráticos em Nery Delgado, e pseudo-erráticos em C. Teixeira. Em 1982 recebi, como oferta, a sua obra sobre a colonização de Angola e o seu fracasso. Havia nele, como aí reza, uma relação de família com aquela colónia. Ele sabia que eu havida nascido lá, bem perto de Benguela onde o seu tio havia ganho a vida para construir a casa em Viseu. Mas é a Solidão Africana que aqui vou lembrar:

“O mato é denso e hostil
cinzento na luz crua
que recorta a monotonia dos seus ramos
ergue-se distante o fumo da queimada
a estrada é nua, deserta e desolada.
Apenas a rubra flor da Erythrina
põe nesta uniformidade uma nota de ternura
discreta na imensidão onde se abre".

Também se é professor com o que se escreve e Orlando Ribeiro tinha disso plena consciência. Eu, como muitos da minha e de outras gerações, fomos seus discípulos pelo que nos seus textos sempre aprendemos.

Cultivando a Geografia como um todo, analisando o espaço de Portugal na complementaridade do Atlântico e do Mediterrâneo, em tudo procurou a razão humana que, e tantas vezes, se alongava numa história que bem conhecia. Portugal era, por assim dizer, um espaço onde se cumpriam histórias de povos que se complementaram.

Já roçava o habitual, aos sábados, quando com toda a Família, íamos almoçar ao Chaparro, lá estava o Professor Pereira de Oliveira. Cumprimentávamo-nos, perguntava-lhe pela saúde e lá ouvia com aquele seu aparente à vontade – "vai bem; tudo vai bem, só esta coisa do grilo é que m'incomoda".

Um dia fui chocado… um Amigo tinha-nos deixado sem aviso. O meu mundo ficou mais pequeno.

Donde estaria, no singelo do seu trato, devia sorrir ao ver o que por mim andava. O Professor Pereira de Oliveira foi meu Amigo, conversámos sobre o que a ocasião nos entregava. Talvez marcado pelo que foi a sua vida no Porto, preocupava-se em encontrar espaços onde deixar a sua marca de homem de ciência, da cultura onde encontrava múltiplos desafios. Ele foi simplesmente alguém que levantou o seu sentir à intransigência da sua verdade. Talvez esteja aqui a razão porque, com Pereira de Oliveira, me lembrou Heidegger, sem que desde qualquer coisa haja a identificar aquele. Mas que querem, aconteceu que o estranho neste pensamento do ser é a sua simplicidade.

Aqui estão, por meus olhos, os quatros personagens deste novo livro. Mas falta um. Sim, falta talvez o principal, aquele que suporta este indelével traço de uma memória agradecida. Fernando Rebelo (!) quem deixará de pensar na lembrança que dele escorre? Quem não irá adicionar mais esta a todas aquelas obras que talvez tenham germinado quando passeou, com olhos de morfólogo, esse rio dual no sentir do seu povo, o Dueça? E o singular perfil dos relevos quartzíticos? E o descuidar cuidado de olhar os espaços onde espreita o risco de perdas em multiplicação? E as ravinas e os montes e os climas e as paisagens que preenchem o seu universo. Por tudo, e mais esta obra, o meu sincero e humilde agradecimento.

António Ferreira Soares








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