quarta-feira, novembro 28, 2007

Miguel Barbosa na Minerva




A Galeria Minerva tem patente uma exposição de Pintura de Miguel Barbosa.

A mostra poderá ser visitada até 18 de Dezembro, de segunda a sábado, das 10h00 às 13h00 e das 14h30 às 20h00.

Por ocasião da inauguração da exposição, realizou-se também o lançamento do livro de poesia de Miguel Barbosa, intulado "Mitomania Poética", que foi apresentado por José Ribeiro Ferreiro.

MITOMANIA POÉTICA de Miguel Barbosa

todos os dias
acontece um Big Bang
dentro de nós
há que compreender a mensagem
que representa para a consciência da humanidade
antes que o pó da tragédia
a dissolva em palavras

O Big Bang interior que mostra o interesse insaciável e transformação interior que pode tornar-se em pó dissolvida em palavras.
Este tema do Big Bang aproveita-o para uma crítica ao tirano que, demagogicamente, de tudo lança mãos para se exaltar:

um tirano
julgando que o Big Bang
acontecera só por sua causa
começou a explodir demagogia pelos poros
enchendo a alma do povo de excrementos
a que chamou justiça
e amor à humanidade
ao meter a utopia num campo de concentração
de ideias

Estes dois poemas – onde se fala e critica a utilização indevida dela se faz – põem em realce outro tema do livro: o poder da palavra, em evidência inclusive por dar título e uma parte da colectânea. Se pode ser a revelação da palavra descoberta pela criança na gota do leite materno (p. 34), é também a lixeira das palavras (p. 53), são as palavras vãs e o lixo verbal (p. 18), é o tirano que explode «demagogia pelos poros, enchendo a alma do povo de excrementos» (p. 16).
A propósito de crítica aos demagogos e sua utilização indevida da palavra vale a pena ler este epitáfio ao demagogo:

epitáfio
ao demagogo mito
de um importante Ministro
que caiu da tribuna onde perorava
o seu grande amor ao povo
e partindo o nariz gritava que o fazia
por amor à Pátria
e também para mostrar a excelência
dos nossos novos hospitais…

As palavras servem para esconder os anátemas da vergonha ou abafar «a denunciante consciência»:

escondidos os anátemas da vergonha
abafada a denunciante consciência
em meia dúzia de belas imagens
cristalinas palavras
reflexos de uma breve oração
primavera sintetizada em dogmas
ressurgimos tranquilos e felizes
prontos a recomeçar tudo
batendo no peito
como um gorila

Pode, no entanto, haver sempre um homem ou algo que transmita ou dê sentido às palavras — os sacerdotes de Osíris e os hieróglifos:

os sacerdotes escreveram
o nome de Osíris
em hieróglifos na Pedra da Roseta
para que ninguém entendesse
a incongruência da mensagem do deus
não a conseguindo decifrar
mas esqueceram-se que de há sempre um homem
que luta pela verdade

Os poemas acabados de ler colocam-nos outro problema e abrem novo tema: a relação da palavra com a verdade que infelizmente nem sempre coincidem – um grave, velho, e muito moderno ainda, problema, o da comunicação entre as pessoas.
Pode ser o conflito do eu com o outro que cada um tem em si, com o poeta a perguntar-se se pode «perdoar ao inimigo cego e feroz» que vive em si:

poderei um dia perdoar
ao inimigo cego e feroz
que fui de mim próprio
se não o enfrentar
no beco do quarto em que ambos vivemos
ou mais uma vez irei esconder-me
no submundo da consciência
fingindo que somos irmãos no ódio
cúmplices no «gang» do mesmo bairro
e mais uma vez vencido?

Ou então a inautenticidade entre o que verdadeiramente é, a fama de que goza e as honras que lhe tributam:

tinha tudo
dinheiro, poder, o busto nos jardins
e retratos até nas maternidades
de onde saíam as crianças ranhosas
que tinha de beijar na rua
com um enfadado sorriso estudado
para disfarçar o desprezo que sentia
pelas vozes que gritavam o seu nome
e não sabiam o imbecil que ele era

Pode ser a criança que nasce de uma ideia que morre:

na ideia
que morre
há sempre uma criança
que nasce
cresce expande-se e vive
nas mãos do artista que a quer moldar
só para si
sem ver que a patine a envelheceu
e o tempo lentamente a vai apagando

E no final deste poema há de certo modo a impossibilidade de o artista transmitir ou materializar a obra que intuiu – tão bem expressa no mito greco-latino de Orfeu e Eurídice. Perfeitamente anotada neste poema:

A Arte
… é uma festa de todos os dias e o sofrimento de cada
segundo de suor das miragens que as mãos calejadas
do espírito não agarram

E também subjacente no poema em que o artista, no «universo vazio e secreto da solidão», «procura as sementes da eternidade» e a esperança «de redenção pela beleza»:

no universo vazio e secreto
da solidão
o artista procura as sementes
da eternidade
escondida nos escaninhos escuros da imaginação
para tecer na falibilidade da luz da ideia
uma esperança miraculosa de redenção
pela beleza

Talvez por isso, em muitos poemas, aparece expresso o desejo de se aquecer «a alma no frio fogo da saudade»:

entregue ao vento
e à chuva
sempre na sombra da cotovia
que passa
à espera de se enroscar na razão
carente de Sol
aqueceu a alma
no frio fogo da saudade

São muitas as vezes, porém, em que o tema percute a tónica da utilização indevida das palavras ou do seu uso para esconder as falhas ou abafar a verdade.

hoje
direi uma única palavra
em meu desabono
é o sabático dia
da abstinência verbal
mas amanhã
para disfarçar os meus crimes
oratórios
vou usar o teu sagrado nome
ainda por toda a semana

As palavras vãs equiparadas a excrementos corrosivos:

por favor
não ponham os corrosivos excrementos
das palavras vãs
à porta de minha casa
e não venham dizer
que o lixo verbal é meu
sou só um injustiçado advérbio
que nunca se desfaz das ilusões
pensando sobreviver na eternidade
da razão perdida

Mas pode ser apenas uma parte da palavra – o «corpo de uma sílaba vazio de conteúdo»:

o bafo
do corpo de uma sílaba vazia de conteúdo
é o grito de lava
de uma catedral submersa
no silêncio
da razão deturpada
pela liturgia do amor egoísta da solidão

Daí que o poeta precise de «ter uma eternidade limpa / das privadas lixeiras» das palavras e do silêncio que é o «mito das palavras que a oração afasta»:

o poeta
precisa de pedir ao espaço
o equivalente às dezasseis milhas de mar
para ter uma eternidade limpa
das privadas lixeiras atómicas
que as estrumeiras já mal suportam…
o silêncio que é o mito das palavras que a oração afasta

E assim fica caminho aberto para outro tema do livro Mitomania Poética – o da poesia ou poema e do poeta.
Noção de irrealização da poesia de que fica «meia dúzia de palavras inúteis», depois de muito se destruir nos «desejos de triunfos pessoais»:

destruí
uma floresta
para plantar éclogas nas fábulas
desejos de triunfos pessoais
valeu a pena sacrificar a Natureza
se de tudo ficou só meia dúzia
de pungentes palavras inúteis?


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