Livro revela processos do escritor Miguel Torga na PIDE
Estudo da Censura é essencial
Renato Nunes, professor de História do ensino básico, em Tondela, é o autor do volume 26 da Colecção Minerva História, das Edições MinervaCoimbra, com o título «Miguel Torga e a PIDE». Dirigida por Luís Reis Torgal, a colecção vai integrar uma série dedicada à repressão aos escritores no Estado Novo, do qual este é o primeiro volume.
Paula Alexandra Almeida
Para o jovem historiador Renato Nunes, e “apesar de todas as dúvidas”, é “impossível compreender e interpretar uma grande parte da História de Portugal do século passado antes de serem realizados estudos sistemáticos sobre a Censura e, muito concretamente, sobre a Censura literária”. Mais, continua, “se a literatura, devido às suas constantes relações com a ficção, nem sempre constitui a ‘melhor forma de nos dar a dimensão da História’, ela é o ‘meio mais poderoso para conhecer a alma dos seus protagonistas’. E se a literatura é, de facto, uma das fontes privilegiadas para estudar e compreender a alma de um povo, a verdade é que o silêncio que perpassa daquilo que não se pode escrever, também reflecte, de um modo tão ou mais profundo, o estado da alma desse mesmo povo”.
A alegria da edição do primeiro livro do jovem autor mistura-se com a desilusão de entender que este estudo poderia ainda abranger determinadas fontes, nomeadamente, as da Direcção Geral de Censura (DGC). Para este trabalho, Renato Nunes recorreu apenas às fontes da polícia política, PVDE/PIDE/DGS e alguns relatórios da DGC. Mas esses relatórios, que estão nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, ainda não estão completamente disponíveis ao público. “O que é pena, na medida em que nos poderiam permitir um estudo mais rigoroso da evolução da perseguição do Estado Novo sobre o escritor e as obras que foi publicando ao longo da sua vida”, refere.
Nesse sentido, Renato Nunes deixa um apelo aos historiadores e investigadores para que se debrucem mais sobre a documentação da DGC. “Em Portugal ainda está completamente por estudar a relação que existiu entre o Estado Novo e os escritores, qualquer um. Existem vários estudos e várias teses de mestrado e doutoramento, mas, curiosamente, no que diz respeito à relação entre a PIDE, a Censura e os escritores, não existe absolutamente nada”, afirma.
“E eu penso que é imprescindível, é fundamental, para compreender a história do Salazarismo, ou do Estado Novo, os historiadores embrenharem-se nos arquivos da PIDE e da DGC, porque são eles, mais do que qualquer outra das fontes, que nos dão uma dimensão do que foi na verdade o regime”. Porque, acrescenta, “se nos limitarmos a estudar o Estado Novo na versão que o regime atribuía de si próprio, na imagem que o regime queria atribuir de si próprio, nunca conseguiremos compreender na verdade o que é que foi o Estado Novo.
Deixar-nos-emos sempre ofuscar por essa imagem que o regime tendia a atribuir a si próprio”.
Neste ponto, o historiador Luís Reis Torgal, orientador do trabalho de investigação do jovem professor, concorda com Renato Nunes. “O Estado Novo não terá procurado criar propriamente uma «arte oficial», mas parece indubitável que tentou estabelecer mecanismos suficientemente perfeitos para que surgisse uma «arte nacional»”. De resto, recorda, “foi essa uma das intenções do Secretariado de Propaganda Nacional, logo fundado em 25 de Setembro de 1933. No decreto que o criou pode ler-se no artigo 4º, entre as funções a desenvolver na ordem interna: «Estimular, na zona da sua influência, a solução de todos os problemas referentes à vida do espírito, colaborando com os artistas e escritores portugueses e podendo estabelecer prémios que se destinem ao desenvolvimento de uma arte e de uma literatura acentuadamente nacionais»”.
De acordo com Luís Reis Torgal, a obra «Miguel Torga e a PIDE» é um estudo sobre um processo organizado pela PIDE – “sigla pela qual a polícia política se tornou tristemente célebre” –, que “mostra como a nossa «ditadura» não teve, efectivamente, o carácter «original» e «benevolente» – imagem que o regime deu de si próprio – que se lhe quer por vezes atribuir, numa lógica «revisionista»”. Efectivamente, acrescenta ainda, “a literatura, como qualquer outra arte, ou qualquer forma de vida (incluindo o quotidiano de cada um, a vida de família, o domicílio, a correspondência…), era constantemente vigiada e violada”.
Torga foi sempre vigiado
A obra divide-se em cinco grandes capítulos: “I. A literatura e o Estado Novo: Como contribuía a literatura para os desígnios do Estado Novo e da oposição?”; “II. «O quarto dia» do romance autobiográfico «A Criação do Mundo» (1939)”; “III. O escritor e as acções oposicionistas (1945-1958)”; “IV. O Volume VIII do «Diário» e a candidatura ao Prémio Nobel da Literatura (1959-1960)”, com uma parte dedicada ao período dos anos 60 e a resposta à pergunta: diminuiu ou aumentou a vigilância e repressão sobre Miguel Torga, após 1950, como consta em alguns estudos?; e, finalmente, “V. As últimas informações recolhidas pela DGS, já no período do marcelismo (1969-1974)”.
Em anexo, Renato Nunes apresenta uma breve cronologia dos processos de Miguel Torga na polícia política, “que me pareceu particularmente útil”, refere, “pois tal informação permitirá que o leitor tenha uma perspectiva diacrónica dos referidos processos”. Seguem-se “alguns originais e, por vezes, surpreendentes documentos extraídos dos processos do escritor na PVDE/PIDE/DGS e uma pequena fotografia da casa em que habitou Miguel Torga quando residiu em Leira, nos anos de 1939 e 1940”. Renato Nunes inclui ainda alguns dados estatísticos sobre as várias informações recolhidas pela polícia política acerca do escritor, entre 1939 e 1973, e uma relação cronológica das obras publicadas por Torga ao longo desses anos. No final, surgem lado a lado os textos extraídos da obra «O Quarto Dia», de «A Criação do Mundo», aquando da sua estreia em 1939 e, por fim, na sua versão definitiva.
Luís Reis Torgal recorda que “a perseguição que foi movida a Torga teve o seu ponto alto e inicial em 1939, quando o escritor ainda era pouco conhecido nos meios do regime, mas em que este, através dos seus mecanismos repressivos, procurava encontrar textos considerados «perigosos» no plano político”. Ou seja, continua o historiador, “quando Torga era, na mentalidade e na cultura pouco esclarecidas dos responsáveis e agentes da PVDE um simples «médico de Leiria», a quem foi apreendido o volume “O Quarto Dia”, de “A Criação do Mundo””. Na obra, de carácter autobiográfico, como o próprio escritor a caracterizou, constavam opiniões e impressões de Miguel Torga, nomeadamente alusões críticas à Espanha franquista, à Itália e, inclusive, à repressão que então existia em Portugal. O livro foi apreendido e Torga preso no Aljube. “O autor foi sempre vigiado, até à morte do regime, como ele próprio se sentia e conforme dizia no seu “Diário”, em peça de grande significado e dramatismo”, que Renato Nunes, aliás, reproduz em epígrafe:
“Coimbra, 27 de Abril de 1961 — Há trinta e cinco anos (desde que, praticamente, comecei a ser gente) que vivo vigiado, como, de resto, todos aqui. E há trinta e cinco anos que olho com o mesmo consternado espanto os sujeitos que me vigiam. Nos tempos da Inquisição, ainda se poderia aceitar — com dificuldade, mas enfim… — que o fanatismo da fé levasse certos homens a comportamentos desumanos, embora Deus lhes não encomendasse o sermão. Mas agora nenhuma cega força interior motiva semelhante deformação. Um polícia secreto de hoje procede à margem de qualquer impulso sectário. Actua simplesmente por ofício. E é isso que me penaliza e assombra: que a intolerância possa constituir um modo de vida”, Miguel Torga, Diário IX, 1ª edição, Coimbra /Edição de autor, 1964, p. 72.
Na obra, Renato Nunes salienta o decreto datado de 11 de Abril de 1933, que dizia que todas as publicações que abordassem motivos políticos e sociais deveriam ser submetidos a essa Censura prévia. “O problema é que o Estado Novo nunca definiu o que entendia por assuntos políticos e sociais, pelo que qualquer assunto poderia vir a ser considerado, depois, pelos censores passível de ser integrado nessa censura prévia”. Ora, como é sabido, Miguel Torga sempre se recusou a enviar as suas obras à censura prévia, pelo que, no seu caso, a Censura só podia ser repressiva – obras eram apreendidas depois de publicadas, como aconteceu com “O Quarto Dia” de “A Criação do Mundo”, “Sinfonia”, o volume de contos “Montanha” e o volume oitavo do “Diário”.
Nos arquivos da polícia política do Estado Novo, actualmente na Torre do Tombo, o investigador encontrou 450 páginas “não só sobre a vida profissional do médico Adolfo Rocha, mas também informações pessoais sobre as suas amizades, fotocópias de cartas endereçadas ao escritor, informações sobre quanto ele ganhava no consultório e informações relacionadas com a mulher”. O que, acrescenta Renato Nunes, demonstra bem a “tentativa de controlar de forma quase totalitária a vida de todos aqueles que, de um modo geral, ousavam pensar”.
Polícia política ajudou regime a manter-se
A sessão de lançamento do livro, em Coimbra, contou com a presença da historiadora Irene Flunser Pimentel, para quem “a grande questão sempre recorrente quando se procede à caracterização do regime ditatorial de Salazar e Caetano, através das suas instituições, é aquela que remete para a sua duração. Ou seja, tentar responder à pergunta: porque perdurou o Estado Novo durante tanto tempo? E, por outro lado, se algumas das suas instituições tiveram um papel preponderante nessa duração”.
Efectivamente, e de acordo com a especialista em História do Estado Novo, e nomeadamente da PIDE, “a polícia política e a Censura ajudaram o regime a manter-se, assim como outros dos seus grandes pilares – a Igreja, e sobretudo as Forças Armadas”. No entanto, acrescenta, “o eficaz aparelho de Censura e o sistema de «saneamento» político estiveram umbilicalmente relacionados com a polícia política e contaram sempre com a sua colaboração”, sendo que “esta última foi o último factor de todos os instrumentos de intimidação, desmobilização, prevenção e repressão dos portugueses. Quando todos os meios de prevenção e dissuasão não impediam os surtos de resistência, então lá estava a polícia política para reprimir e neutralizar selectivamente aqueles que lutavam contra o Estado Novo”.
Este estudo sobre Miguel Torga e a PVDE/PIDE/DGS aborda precisamente a polícia política e a Censura. “Trata-se de uma monografia que parte da análise das 450 páginas do processo da polícia política de um determinado escritor – Miguel Torga –, cujo ponto de partida e hipótese analítica, confirmada pela conclusão, parte do particular para aventar a existência de uma situação mais geral: a repressão aos escritores”.
Mas uma vez que se sabe e está na legislação a censura prévia às publicações periódicas, teatro e cinema, afinal, houve, ou não, censura prévia aos textos literários? A resposta é afirmativa e Renato Nunes lembra, na sua obra, o DL 22469 de 30/8/43 que alargou a Censura às publicações não periódicas, que apesar de não ter introduzido, no papel, a censura prévia, ou seja, a repressão preventiva das páginas literárias, a prática acabou por ser outra, mais insidiosa e perversa.
“A partir do diploma de 1943, a ambiguidade da lei contribuiu para confundir as editoras, que, para evitarem riscos e represálias, consentiram enviar previamente obras que pretendiam publicar à DGC”, recorda Irene Flunser Pimentel. “Portanto, uma das funções do Gabinete de Leitura das páginas literárias também passava por fazer a censura prévia, pois contava com um processo de auto-censura por parte dos escritores, embora, diga-se, não tivesse sido o caso de Torga”.
Recorde-se, mais uma vez, que o escritor sempre se recusou a apresentar previamente as suas obras. Mas houve, no entanto, “escritores, intelectuais e artistas expressamente convocados para apresentar as suas obras antes de serem distribuídas e a censura repressiva, numa fase posterior a publicação, a posteriori, sempre existiu”.
O Primeiro de Janeiro
Suplemento 'das Artes das Letras'
segunda-feira, junho 04, 2007
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