domingo, março 04, 2007

Poemas de A. Galvão-Lucas


Do lado do avesso

Saem-lhe rolos de fumo
Dos frios peitos dos pés
Quando singra nas calçadas
E a poeira dos careiros
Voa pelas chaminés
Sem raízes enterradas
No marasmo das marés
Deixa pegadas no ar
Desenhadas em cimento
Sobe até ao santo inferno
Desce ao ímpio firmamento
Em limpos lagos de lodo
Cata-ventos submarinos
Badaladas calam sinos
O som liberta alimento
Sem negaça anzol engodo
Nas mãos um par de sapatos
Pé-de-meia nos regatos
Passa a vau em vão sem pressa
Secos rios de dinheiro
Diz que não sem que alguém peça
Segue vendavais sem vento
Por bacanais de convento
Faz de monge sem mosteiro
Encurva a luz no vazio
Esticando bem o fio
Contra o sol do nevoeiro
Sai por portas já fechadas
Ignorando escancaradas
No chão passado e presente
Em céus de fundas entranhas
Por fim no fundo da mente
Refusca todas as manhas
De ardiloso mimetismo
Tenta subir no abismo
Tapando rombos e fendas
Por onde possam fugir
Derradeiras ilusões
Duma última cartada
Em desespero jogada
Que os silêncios atordoam
Sob a lua do meio-dia
Enquanto o corpo porfia
Na mentira sem proveito
Sem a nada ter acesso

— Nem do lado do direito
Nem do lado do avesso…





De ânimo leve

São os sábios que dizem como é,
Todos de opinião
Que não é como se dizia.
Deixaram falar,
Por seu lado queimaram pestanas,
Puseram o dedo
Na ferida, cem por cento:
E o caso é que
Para eles começa a ser
Um livro aberto o Universo,
A qualquer hora.

Metafisicamente dão boas notícias,
Merecem confiança;
Sobre a questão do adormecer contra vontade
E não mais acordar mesmo querendo,

Já têm tudo previsto,
Com sólidas teorias, sorrisos nos lábios,
Boa vontade, paciência,
Por agora.

— A morte? A vida? É o ovo de Colombo:
Uma simples questão de pequenas partículas
Que se chocam frente a frente,
Ombro a ombro,
Quando se juntam,
Principalmente sob a forma
De gente.
É o que consta, sem cerimónia.

São de admirar os bondosos
Sábios, sábios
Prudentes, conscientes da realidade.
Ouçamos a sua verdade!
Adeus místicos mistérios!
Adeus aquela dúvida que sempre
Tanto tem afligido!
Ad perpetuam?
Mas, ponderou há dias
Sábio amigo:
— Seja como for, a vida é tempo breve
E,
grosso modo: de passagem,
Canto chão sui generis

Para se ouvir
de ânimo leve…

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