Estrela Serrano relata os tempos em que foi provedora do leitor do Diário de Notícias
Quando a convidaram para ser provedora do leitor do Diário de Notícias, Estrela Serrano teve dúvidas se estariam a convidar a pessoa certa. "Tinha sido assessora do doutor Mário Soares e nunca mais voltei às redacções", confessa a ex-jornalista e actual professora de jornalismo e membro da Entidade Reguladora da Comunicação (ERC). Mas a sua consciência e o apoio de colegas levaram a que aceitasse o desafio que hoje descreve, em cerca de 200 páginas, no livro Para Compreender o Jornalismo - o Diário de Notícias visto pela provedora dos leitores. A experiência, confessa, acabou por se tornar uma das mais enriquecedoras da sua carreira.
Não foram tempos fáceis, afirma Estrela Serrano sobre o período entre 2001 e 2004, que se viveu no Diário de Notícias enquanto foi provedora dos leitores: "Apanhei uma fase difícil. É um jornal com um peso institucional muito grande, para o bem e para o mal." O jornal sofreu alterações gráficas e alterações na sua equipa directiva. Surgiu entretanto o processo Casa Pia. E depois a guerra no Iraque. A ebulição marcada pelos acontecimentos acabou por também se sentir na redacção. "Havia ali contradições internas tão grandes que até eu me interrogava onde estava a linha editorial. Uma vez uma jornalista acabou por me dizer que os próprios jornalistas também precisavam de um provedor."
A actual membro da recentemente criada Entidade Reguladora da Comunicação confessa que a experiência enquanto provedora do leitor do Diário de Notícias lhe trouxe largos benefícios para sua actual função: "Recordo tudo com grande entusiasmo e até foi uma experiência premonitória da minha nomeação para a ERC. Deu-me uma visão mais alargada, sobretudo em relação à natureza ética e deontológica do jornalismo. Há quem acredite que o provedor não é mais do que um relações públicas. Eu acredito muito na força da auto-regulação. A condenação moral, que resulta de uma crítica feita nas páginas do jornal, é a mais eficaz", afirma, acrescentando que encara aquele momento da sua carreira como muito enriquecedor: "Foi das coisas mais interessantes que fiz."
Do processo casa Pia, Estrela Serrano recorda no seu livro o episódio do juiz super-homem, lembrando quando, como provedora do leitor, se insurgiu contra a publicação de uma primeira página com o juiz Rui Teixeira vestido de super-homem, acompanhado do título "O super-juiz". "O título super-juiz dificilmente se adequa a um jornal de referência que o DN se reclama", afirma sobre este episódio, onde equipara a solução defendida para a primeira página com as seguidas pelos tablóides e jornais populares. Para Estrela Serrano, apesar dos jornalistas terem tido o mérito de denunciar o que se passava na Casa Pia, isso acabou por depressa se tornar, em seu entender, um "caso negro do jornalismo português".
Mais à frente, passa da crítica ao jornalismo para a crítica aos responsáveis políticos, aludindo ao episódio da publicação na revista Time de um artigo sobre o turismo sexual em Bragança, que levou a que o Governo português mandasse retirar das páginas da prestigiada revista norte-americana a publicidade ao Euro 2004. A então provedora classifica essa decisão do Governo como um acto de censura, apesar de a Time ter uma dimensão económica que a imuniza contra estas investidas. "Nas sociedades de poder económico reduzido, em que a publicidade escasseia, as decisões editoriais estão cada vez menos protegidas face a preocupações comerciais. Parece não ser esse o caso da revista Time mas pode ser o de alguns media em Portugal."
Estrela Serrano reconhece que o facto de ter sido até hoje a única mulher provedora do leitor em Portugal lhe pode ter dado alguns benefícios: "Não sei se se pode falar sobre um olhar feminino sobre as coisas. Mas há certos aspectos que escapam aos homens, nomeadamente em relação a questões que envolvem públicos sensíveis", lembra, recordando uma fotografia de primeira página em que se via uma senhora de fralda a ser evacuada de um lar de terceira idade onde tinha ocorrido um incêndio: "Aquilo para mim até foi doloroso."
Ana Machado, no PÚBLICO de hoje
Título: Para Compreender o Jornalismo
Autora: Estrela Serrano
Editora: Minerva Coimbra - Colecção Comunicação
Preço: 18 euros
216 páginas
"Provedores da TV e rádio têm um desafio complicado"
Provedora do leitor entre 2001 e 2004, Estrela Serrano mostra-se "esperançada" em relação ao futuro trabalho dos recentemente empossados provedores da televisão e rádio públicas, respectivamente, José Manuel Paquete de Oliveira e José Nuno Martins. "Na televisão, acho que a evolução será, no futuro, para dois provedores - um de programas e outro de informação. Mas serão os primeiros a fazer o caminho, terá de haver muita doutrina. Têm um desafio muito complicado", considera, sobre o papel dos primeiros provedores de TV e rádio em Portugal. Para Estrela Serrano, o mais difícil será criar um programa para o provedor, quer na TV, quer na rádio, que seja apelativo para os ouvintes ou telespectadores: "O mais difícil será criar um espaço interessante, que chame as pessoas. Creio que a Fernanda Mestrinho saberá fazer isso", diz sobre a jornalista da RTP escolhida para esta tarefa. "Terá de se encontrar uma solução estética. Se for um programa de sucesso, as privadas vão atrás", comenta, em relação à possibilidade de esta função do provedor do leitor se alargar à SIC e TVI. Esta última até já teve um provedor no seu início, que foi António Sousa Franco.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário