Foi apresentada recentemente a nova edição do Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo organizado por Edgard Panão. A edição original, publicada em 1953, por Belisário Pimenta, teve uma tiragem de 50 exemplares rubricados e assinados pelo autor. Baseada nessa 1ª edição, este volume, que agora se publica, teve como organizador e editor literário Edgard Panão e contou com a chancela das edições MinervaCoimbra.
Contem uma nota prefacial do Prof. Doutor José Augusto Cardoso Bernardes (Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), uma nota justificativa para esta publicação do Dr. Edgard Panão intitulada " Razões para a nova edição do Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo" e ainda um anexo à nova edição de autoria do Prof. Doutor António de Oliveira, que apresentou esta obra, numa sessão que decorreu na Livraria Minerva, da rua de Macau, em Coimbra.
Esta edição organizada por Edgard Panão destina-se a homenagear Belisário Pimenta, um eminente vulto da Cultura portuguesa da primeira metade do século XX, que publicou perto de 1000 publicações para as quais, de um modo geral, foi convidado para a sua elaboração, e sendo que, para a publicação das mesmas, teve apoio em jornais, revistas, opúsculos, etc.
A sessão foi iniciada por Isabel de Carvalho Garcia (Minervacoimbra) que teceu algumas considerações sobre o autor e elogiou a sua forma altruista de para além da sua satisfação pessoal, fazer uma investigação cuidada de índole histórica e genealógica para publicação desde 1993, altura em que se reformou. Com vários livros publicados, Edgard Panão, tem contribuído para perpetuar a história regional e local, assim como a memória de alguns vultos da nossa cultura, sendo esta publicação o seu mais recente testemunho.
O professor António de Oliveira apresentou este livro cujo excerto deixamos no fim deste documento, e por fim o Dr. Edgard Panão agradeceu a todos a presença e justificou esta nova edição do «Cancioneiro Popular de Miranda do Corvo».
Excerto da apresentação da obra de
Belisário Pimenta, Cancioneiro popular de
Miranda do Corvo. Nova edição de Edgar Panão, Coimbra, MinervaCoimbra, 2012, feita por
António de Oliveira:
«1.A
obra que nos congrega é uma nova edição
do Cancioneiro popular de Miranda do
Corvo, o qual foi recolhido, comentado e editado pelo coronel Belisário
Pimenta, cuja memória evocamos. A sua publicação começou em 1949 numa revista de muito curta duração (Terras
do Mondego), conseguindo o autor trazer a público todo o conjunto,
prefaciado em 1943, apenas dez anos depois. Reaviva-o agora, numa homenagem ao
autor e à terra que o suscitou, o Dr. Edgard Panão com o dinamismo e a
inteligência de que tantas provas tem dado ao longo da vida, qualidades que
agora, e afinal desde que se aposentou, foram historiograficamente expressas
através das vivências e do amor à terra que o viu nascer ou simplesmente criou,
havendo trazido a público, nos últimos doze anos, dez volumes, se fiz bem a
conta, não contando com a presente reedição, dos quais a maioria se enquadram
na história local. Temática que só por si se cruza obrigatoriamente com
Belisário Pimenta, um cultor também da história pátria, pátria terra onde se
nasceu ou nela se criaram raízes que prenderam e alimentaram a vida toda através
dos afectos da infância. A influência telúrica, em Edgar Panão, conduzi-lo-á,
literariamente, à Escola Agrícola, onde situa a
destinatária das cartas de Leonardo em tempos de anunciação precoce da
libertação do género e, certamente, de si próprio. A influência da terra-mãe em
Belisário Pimenta, mais complexa, levá-lo-á a criar horizontes de silêncio,
mesmo quando do alto do monte da Esperança, no dealbar do dia em que terminava
a noite de prevenção, olhava do quartel de Santa Clara para o casario alcantilado
de Coimbra, seguia pelo Dianteiro aos contrafortes do Buçaco e rodava o
pensamento, atraído e absorto, para a figuração de Miranda do Corvo, onde
imaginativamente o envolvia a evasão silenciosa das águas, das árvores e da
terra criadora. Paisagem que vista da Senhora da Piedade de Tábuas, de onde se
acentuava «o verde escuro, severo, dos pinheirais do Valongo», lhe continuava a dar, como escreveu ainda em
1950, «a íntima sensação de calma e o esquecimento insensível das maldades do
mundo». Terra que nunca esqueceu, desde o tempo em que na meninice corria pela
quinta da Cerrada da Nora e ficava a olhar para a represa do Alheda,
embora já sentisse que a serra, por vezes, quando contemplada «a certas horas,
metia medo como muralha escura que se levantasse no extremo da planície», como
recorda numa passagem do longo memorial da escrita da sua vida.
Edgard Panão, que se
criou em Miranda do Corvo, onde fez a instrução primária, travou conhecimento
com Belisário Pimenta desde muito jovem, em Coimbra quando estudante, e pode
adivinhar-se, na imaginação que se
desenvolvia e se rebelava, o acrisolar de um arquétipo de semblante cultural
ou, quem sabe, o de uma figura que um dia gostaria de representar, embora sem papel
ainda definido. As vidas são realizações
de sonhos da infância, necessariamente voltados a sonhar nas vigílias
constantes da vida.
As vidas vividas do autor do Cancioneiro e a do novo editor
literário, homens de séculos e personalidades diferentes, seguiram direcções
existenciais divergentes. Num ponto, pelo menos, inequivocamente se
encontraram: o de se terem dedicado a tempo integral à escrita da história
depois da passagem à reserva ou à aposentação. Um dos temas comuns, a amada Miranda individualizada como a do
Corvo, povoação e ave que as rivalidades locais, expressas em quadras populares, gostavam de colocar
quieto, por agoirento, em cima de um pinheiro, esconjurando-o da vila (quadra
nº 85).
Belisário Pimenta,
nascido em Coimbra em 1879, foi um oficial do exército cuja carreira parou no
limiar do generalato. O gosto pela história, no entanto, despontou muito cedo,
como demonstram alguns trabalhos de índole estudantil ou de coleccionador de
factos históricos, tendo brotado, intelectual e emocionalmente, quando aos 13
anos teve oportunidade de abrir em madeira uma gravura destinada à capa da
primeira tentativa histórica do teólogo António Garcia Ribeiro de Vasconcelos,
a história do culto da Rainha Santa, mulher de D. Dinis e padroeira de Coimbra,
editada em 1894. Cooperação que nunca mais esqueceu, num tempo em que os
símbolos do saber universitário, a borla e o capelo, criavam
mundos hipostasiados, de cuja magia nunca se libertou.
Embora profissionalmente
tivesse seguido a carreira militar, dela se evadiu, sempre que possível, através
da investigação história, na qual perdurou, a tempo integral, depois da
passagem à reserva, havendo começado por estudar história local, nomeadamente a da vila de Miranda do Corvo, onde não nasceu, mas
onde tinha raízes profundas através dos antepassados maternos.
Com este objectivo
começou a frequentar, em 1913, o Arquivo da Universidade e o cartório
eclesiástico, então situado no seminário, seguindo-se depois muitos outros
fundos documentais, incluindo, em Lisboa, os da Torre do Tombo e Biblioteca Nacional. Nesta afã se esfalfou
durante anos e anos, sem nunca ter conseguido levar a bom termo o ambicionado e
ambicioso projecto, acabando por publicar apenas fragmentos dispersos em
jornais, alguns deles acabados de reunir e reeditar em volume oportuno, com adaptação
e anotações do senhor Engenheiro Carlos Ferreira, em co-edição da Câmara
Municipal de Miranda do Corvo e Edições MinervaCoimbra (Belisario Pimenta, Escritos dispersos).
O simples folhear da
documentação recolhida para erguer semelhante o monumento historiográfico, e
que legou ao Arquivo da Universidade, deixa-nos de imediato a impressão da
impossibilidade de concluir sozinho semelhante monografia a qual, a ser
realizada, bem poderia anunciar, em outra conjuntura, as que a partir dos anos
cinquenta e sessenta se realizaram, mas apenas aos níveis da história económica
e social, tempo em que Belisário Pimenta, no entanto, havia já desistido do
projecto e inaugurado entre nós, pela via militar, a história das ideias,
persistindo com gosto nesta temática. As grandes dificuldades estavam na
síntese, obra do historiador, dos documentos que o investigador recolhia a eito.
O anúncio da história de Miranda do Corvo,
feito precisamente no ano de arranque do Integralismo Lusitano, seguia,
forçosamente, por caminhos divergentes deste. Ao integralismo interessava-lhe a
regeneração da pátria através do regresso da tradição monárquica, «onde a
célula social é a família, a qual se integra territorialmente no município e
profissionalmente na sua corporação». Belisário Pimenta, que tinha em Herculano
um dos seus venerados em matéria de História, optava pela liberdade,
pretendendo que as vereações de Miranda
do Corvo se realizassem sob a presença
simbólica do seu foral manuelino, como durante décadas sucedeu, como acabo de
verificar no trabalho citado de Carlos Ferreira, embora, como aponta, a luz
(pelos danos) o fizesse recolher, encadeado, a seguro cativeiro.
O projecto da monografia
local que Belisário Pimenta idealizou, um projecto muito sui generis, como admite, traçado por sonho ambicioso, como também
aceita, não podia deixar de incluir a história da cultura do povo mirandense, a
qual tinha uma das suas expressões nos romanceiros e cancioneiros populares, na tradição que vinha
de Garrett e sobretudo dos neogarrettianos.
Sabemos quando Belisário
Pimenta começou a recolher as primeiras quadras e os esforços que empreendeu para, ao longo de vinte e cinco anos, levar a bom fim um
projecto onde, finalmente, acaba por apresentar um corpus de documentação oral
expressivo do viver e do sentir
do povo mirandense durante os últimos séculos, pelo menos.
Foi seguramente nas
férias de 1918, «umas boas férias», como considera, de mês e meio que passou em
Miranda do Corvo entre Julho e Agosto, que avançou mais uma vez para o terreno.
Como escreveu, «corri então o concelho em busca de informações e documentos,
copiando documentos dos arquivos das confrarias, da residência paroquial ou de
uma ou outra particular tudo para a desejada monografia que me consumiu anos de
trabalho, canseiras e despesas». Com o compadre José Ferreira de Carvalho, «fez
grandes caminhadas pelas aldeias afastadas, correu a serra e o aglomerado
interessante da Serrinha, esquadrinhando recantos menos conhecidos». «Subiu ao
monte de S. Gens, onde há uma capela que creio ser um problema que deixo para
os posteros que queiram resolver bagatelas – até que regressei a Coimbra».
Bagatelas, sem dúvida, numa fase já avançada da sua historiografia, a do tempo
da passagem a limpo das memórias, a que
mais uma vez recorri.
Do esforço iniciado em
1918 e concluído em 1943, resultou a
publicação de 573 quadras e uma quintilha, na numeração da presente edição,
referentes ao espaço concelhio, quase todas de segura origem popular. Belisário
Pimenta distribuiu-as por dez conjuntos, comentou-as com a perícia de quem
conhece ao pormenor os lugares, os nomes e as gentes e valorizou o volume com
diversos índices, seguindo os cânones editoriais de então, e uma bibliografia.
O editor literário juntou à presente
edição uma Nota prefacial, escrita pelo actual Director da Biblioteca Geral,
Senhor Prof. Doutor José Augusto Cardoso Bernardes, deu razões que motivaram
a decisão de reeditar o Cancioneiro e colocou no final do volume
um apêndice biográfico que redigi para outra circunstância.
Através das quadras do Cancioneiro perpassam modos essenciais,
duradouros, não efémeros, da vida quotidiana local, por vezes comuns a
outros lugares através das migrações internas, das deslocações dos romeiros e
outras influências que as vias de comunicação sugerem. Localmente, abundam os
afectos, profanos ou religiosos, como
dando razão aos amores heráldicos da vila (hoje cidade). Entre eles, o amor à
terra, por vezes envolvido em amor filial. Reflectem, ao mesmo tempo, as
agruras do trabalho, a sua evasão em tempos festivos ou pela procura de
melhores dias através da emigração. A labuta da serrana em ir buscar lenha à
serra ou levar o comer ao pastor (se é mesmo de pão que a ceia era feita); o
fabrico da olaria vermelha, mudando de origem quando chegava ao mercado de
Coimbra; a tecedeira imobilizada no seu local de trabalho, longe de ver e ser
vista; a manifestação do maravilhoso; a água, as fontes, os rios, as azenhas e
as pontes; a sensibilidade à natureza; os pinhais, as oliveiras e castanheiros;
as rosas, as laranjas e as maçãs, a cebola, a pimenta e os pimentões; a
alegria, a doença e a dor; S. Pedro, S. João, o Senhor da Serra e nossa Senhora
da Piedade, atraindo romeiros, alguns amortalhados, vindos de muito longe;
Nossa Senhora da Conceição, da Boa Morte e outras protecções
divinas por todo o concelho. Palavras que se podem multiplicar abrindo o volume
e procurando os sentidos simbólicos de cada uma. [ Referência à antiga quinta do avô, a
Cerrada da Nora (quadra nº 38), por onde em menino Belisário correu em
correrias de liberdade e de que existem documentos manuscritos e topográficos
que legou ao AUC; sobre as serranas jovens, nº 102 e 103, de expressivo
simbolismo; a tecedeira sempre recolhida, nº 397].
O pequeno número de exemplares da impressão do
Cancioneiro em 1953 não permitiu um
alargado conhecimento da recolha, permanecendo muito pouco conhecida a nível
nacional. Impunha-se a sua divulgação. O editor literário e a editora
MinervaCoimbra, com larga tradição na difusão da cultura e da história local e
regional, em boa hora uniram esforços, entregando hoje ao público uma obra que
continua actual.
O tempo é de globalização e, por isso mesmo, é
o tempo da emergência da história transnacional e global, cujos olhares se
colocam acima dos fragmentos, dos pedaços, das miunças, das migalhas e dos
etnocentrismos. A micro-história e história global são, no entanto, apenas dois
modos diferentes de considerar a realidade histórica, necessitando a
macro-história generalizante do conhecimento local a diversos títulos.
A maior homenagem que se
poderia fazer a Belisário Pimenta como historiador - o autor que hoje lembramos tem direito a
muitos outros títulos, como o de promotor e defensor da república, como se tem
ultimamente acentuado - , seria
precisamente a de escrever, em termos de modernidade historiográfica, uma
monografia de Miranda do Corvo, onde Belisário Pimenta teria um lugar cativo de
primeiro colaborador. Com a advertência, necessária, de que soube por si, fora
da escola que então nascia em Coimbra (a
recém fundada Faculdade de Letras), criar uma nova vida dentro da vida militar,
que seguramente lhe custou muito trabalho, mas que lhe permitiu exorcizar medos, maiores dos que a serra de
Miranda lhe provocava na meninice quando
as nuvens negras se adensavam, dando-lhe força para se erguer da modéstia que
sempre cultivou e receber hoje, mais uma vez, o testemunho do nosso respeito, a
que tem jus como militar culto e probo
historiador. »
Edgard Panão nasceu em Penela. Viveu em Miranda do Corvo. Foi professor liceal de Filosofia e História em vários liceus do país director e professor da Escola do Magistério Primário de Silva Porto (actual Kuito) Angola, e director e professor da Escola do Magistério Primário de Aveiro; responsável pelos Serviços de Educação em Dili. Foi ainda vereador e presidente da Câmara Municipal de Estarreja.
Desde 1993, altura em que se reformou, que se dedica à investigação de índole histórica e genealógica para publicação, juntamente com trabalhos de outra índole. Destacam-se “O Moleiro Inteligente” (2000), “A reconstituição das famílias da freguesia de Salvador da vila de Miranda do Corvo” (2002), “Covseiro de Myranda” (2006), “Cartas a Ana de Leonardo” (2007), "Os Trautos de Miranda" (2008), "Comentário - O outro lado da coisa" (2009), "Os convencidos da Vida" (2010), " O Tombo da República" (2011) estes seis últimos livros com a chancela das Edições MinervaCoimbra.
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