No dia 13 de Julho foi lançado o livro "A Coroa de Góis" de Ana Filomena Amaral. A sessão decorreu no âmbito da GóisArte, iniciada por Ana Filomena Amaral há 10 anos. A apresentação da autora esteve a cargo de Isabel de Carvalho Garcia e a apresentação do livro de Assumpta Coimbra.
Reflexão a partir da obra “A Coroa de Góis”
Começo por felicitar a Ana Filomena Amaral pela obra “A Coroa de Góis”, pelo que esta nos proporciona em termos de ajuda no equacionar o significado de uma vida humana autêntica e também a nos posicionar no mundo actual, de modo comprometido, crítico e solidário, isto é, com sabedoria.
Insisto na palavra “sabedoria” porque esta ocupa uma posição fulcral nesta obra, simbolizada na “lâmpada de Hanuka” e, na actualidade, constitui, talvez, a única postura capaz de orientar e guiar o homem humanamente.
A sabedoria não visa apenas o conhecimento; o conhecimento pretende distinguir o verdadeiro do falso, o real do aparente; a sageza, servindo-se do conhecimento, aspira orientar e guiar o homem na vida, isto é, ensiná-lo a viver.
Concordo com o filósofo F. Pereia quando este refere que estamos numa época em que “Conhecimentos sobejam. O que falta muitas vezes é discernimento, juízo, sabedoria para utilizá-los”(Filosofia en Accion, 1987).
Por sua vez, agradeço a confiança depositada em mim pela Ana Filomena Amaral para fazer a apresentação deste seu livro, o que muito me sensibiliza em termos de amizade.
Somente espero não a decepcionar ou mesmo, com as considerações que vou tecer, não escamotear a importantíssima mensagem que o livro veicula.
Uma vez que não há nenhuma leitura descomprometida ou inocente do real, e uma vez que um texto é sempre pretexto para um outro texto, previamente informo que vou tentar, despretensiosamente, como aprendiz e interessada pelas coisas da Filosofia, “agarrar” em algumas ideias-chave manifestas e/ou latentes nesta obra. No fundo, fazer aquilo que a autora expressa neste livro a propósito do pai de Josef Rosenbaum, que dava aulas de filosofia e foi, passo a citar: “acusado de subverter as mentes”. Eu acrescento, isto necessariamente, com vista à assumpção de uma atitude pessoal, critica e reflexiva do mundo e da vida.
“A Coroa de Góis” é uma obra dedicada a Alice Sande, uma miniaturista que, particularmente, nesta terra não necessita de apresentação, aliás protagonizada ao longo da obra pela personagem “tia Esmeralda”. Uma artista em que, passo a citar: “as palavras voltaram-se para dentro e converteram-se em sentimentos miniaturados, o seu mundo passou a ser as pequenas e finas placas de marfim, onde o amor se aguarelou em abraços, beijos, seduções, em liberdade. A arte tornou-se o retrato miniatura da própria vida e a sua alma revelou-se em luz e cor”(pp. 129-130). Uma “artista das montanhas, dos rios e dos céus, da água, do ouro e do mel, do real e do que está para além dele”(p.14).
Acerca da obra “A Coroa de Góis” proponho-me enfatizar e explorar três temas que me parecem fulcrais para perceber a mensagem da autora. Refiro-me como referenciais chave aos conceitos de Natureza, Humanidade e Historicidade.
A essência desta obra está na valorização da Natureza e, consequentemente, na acentuação da Humanidade. E sobretudo, pressupõe-se e frisa-se como indispensável a ligação do Homem à Natureza, também explicada e explicitada numa visão cósmica, com alusões a actos originários e a símbolos primordiais.
A Natureza não pode ser aniquilada porque dela depende também o equilíbrio humano. A Natureza deve ser valorizada, conservada e admirada.
Como se refere na obra: “… no interior anda-se devagar mas não se pára, o nosso ritmo é o da Mãe, ela também não tem pressa e a nossa é que está a destruí-la”(p.14); “Esta paisagem submerge-me, reduz-me ao insignificante e, no entanto, sinto que faço parte desta grandeza. A sério, perante esta beleza sinto-me como um todo, não há dúvida que a cidade isola-nos, fragmenta-nos, esvazia-nos. Talvez esteja aqui a nossa única salvação, se nós salvarmos a natureza ela salva-nos a nós”(p.139).
“A descer, entre vegetação e pedras lá encontrámos o xisto insculpido e, sob o nosso olhar abriu-se a clareira do mundo onde o silêncio e a aragem, filha do vento, dominavam as penedias. Aí rendemo-nos à força da Mãe e celebrámos silentes o ritual da imortalidade”(p.94).
Concretizando em relação ao Concelho de Góis, de modo particular, diz a personagem Jorge (talvez, em parte, retrato da autora) “quando cheguei a Góis fiquei contagiado com a sua atmosfera e a inspiração surgiu com a vontade de celebrar a grandiosa natureza que envolve esta pacata vila”(p.41), pois “o livro está praticamente escrito, esta terra é de sonho, de romance, de segredo … Enfim, possui todos os ingredientes …”(p. 47).
Eis um excerto que pode sintetizar esta obra!
“Na cidade o ar rareava para tanta gente e tudo esmaecia e fenecia sem ele. Ali respirava-se vida, terra, água, a matéria invadia-me todos os sentidos, transmitindo-me uma sensação de plenitude, só possível quando somos um todo inseparável, em osmose. Talvez se encontrassem ali, no interior do país, da terra, da matriz, de nós, nas gotas de orvalho, no canto dos pássaros, no murmúrio do vento, as respostas a todas as perguntas que apoquentem a humanidade. Talvez ali, em comunhão absoluta com a mãe, ser humano se revelasse ser o segredo da imortalidade”(p.121)
De facto há que alertar para o duplo perigo de destruição matricial da Natureza e de desenraizamento do homem. Aspecto este que as personagens do livro teimam em salientar.
Efectivamente, impõe-se questionar nos tempos actuais e nos que se avizinham: como definir o homem? Que suporte ontológico atribuir-lhe? Perspectiva-lo como um ser amputado e dependente, não da tradicional “Mãe Natureza”, mas de toda uma quinquilharia mecânica e electrónica, que tenta camuflar o seu vazio existencial?
Não se vislumbrará o esbatimento de uma parte essencial do real? Que lugar para o “outro”? Perda da sua referência ou o seu esquecimento na socialização do homem? Sobrevalorização da sua presença virtual em detrimento da real?
São hoje crescentes as análises críticas e os exemplos de tomadas de posição e de alerta para uma existência emersa no virtual, para um modo de vida preso ao “ligar e desligar”, mistura de espaço real e simulado, conduzindo a uma desmaterialização da nossa própria casa e condenando o homem ao uso de “próteses” electrónicas.
Acarretando tal, que o mundo onde o homem é, vive e pensa ceda lugar a outro, a uma outra forma de realidade na qual a metáfora da casa se transfigura. Assim, acrescenta o filósofo Miguel Baptista Pereira, “perde-se na bruma dos tempos a convicção da sabedoria humana de que existir é morar em sentido originário, é estar no seu espaço próprio, que é o mundo como o animal no campo ou as estrelas no céu”(1995, 237).
Não sem laivos de nostalgia e irreverência pergunto: o que aconteceu ao cheiro natural do nosso corpo? Que considerar como casa: o lugar onde colocamos o chapéu ou as instâncias por onde nos deslocamos via digital?
Como perspectivar a vida corpórea neste processo de cibergnosis, de transcendência do corpo em puro espírito ou informação?
Quanto a mim, impõe-se interrogar: Que postura perante tal viragem?
Para mim é, simultaneamente, de assombro e encantamento mas, também, de sensação de algum empobrecimento. Pelo menos de alerta pois que o mundo não pode ser máquina, nem as relações humanas sempre mediadas e perspectivadas em função dela.
Contudo, é urgente informarmo-nos e acompanharmos atentamente e criticamente as mudanças.
As personagens do livro “A coroa de Góis” procuram estar no mundo de modo peculiar, com uma história e um projecto, não sendo espectadores desinteressados da realidade física, histórica e social.
Assumem-se como seres problemáticos e problematizantes que frente à realidade, face ao mundo e à sua existência assumem uma atitude activa e doadora de sentido. A partir delas surge uma reflexão sobre o mundo, sobre a vida e sobre elas próprias, por sua vez, com vista à acção.
Que futuro para a Humanidade? Que pensar acerca dos crimes contra a Humanidade ocorridos durante a II Guerra Mundial? Que discorrer depois de “Auschwitz”? Que dizer da defesa do progresso, proclamado pelo Iluminismo, crente na emancipação da Humanidade? Não terá perdido a sua credibilidade?
São personagens que equacionam e articulam o passado, presente e futuro. Passo a citar:“como se o passado se projectasse no futuro e depois retrocedesse para o presente, através de mim, comigo”(p.47).
Este aspecto é importantíssimo face a toda uma vivência na actualidade em que se assiste ao advento do homem da contingência imediata que pretende comprimir o tempo, senão, aboli-lo e que procura viver afastado do passado e do futuro, na busca do presente eterno.
O homem-presente distingue-se assim do homem perspectivo que pressupõe a visão de um tempo histórico (do passado para o futuro através do presente), de um tempo cumulativo edificado pela experiência e onde a expectativa, interpretada como horizonte possível, não se pode deduzir apenas daquela.
Em contraposição a tudo isto estas personagens se afirmam. Utilizam palavras com densidade ontológica.
Defende-se a importância da palavra e a preconização de que, cito: “as palavras deviam ser poupadas como as placas de marfim das miniaturas, pois cada vez havia menos gente a saber utilizá-las”(p.12).
Preconiza-se para a palavra, volto a citar: o “desnudar dos seus hábitos quotidianos, purificar da vulgaridade do uso, encher de seiva original”(pp.115-116).
Parafraseando as palavras de uma personagem da obra ao agradecer o que tinham feito por ele, os riscos corridos, enfim, tudo o que vivera em Góis …, vou dirigir o resto da frase à autora Ana Filomena Amaral: “com certeza ficámos mais sábios e mais puros com esta experiência, talvez até mais humanos, no pleno sentido da palavra” (p.133).
Tenho dito.
Góis, 13 de Julho de 2007
Maria Assumpta Coimbra
Maria Assumpta Coimbra
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