sábado, julho 14, 2007

A Coroa de Góis

Dentre a mansidão orvalhada dos pensamentos ela surgiu, sempre branca, como todas as visões, corpo de luz e olhos de estrelas. Mãos de água acariciaram-me o rosto e diluíram-se, eu tremulamente despia-a e restituía-lhe a carne quente e macia que se cingiu ao meu corpo. Foi quando os sentidos partiram em vagatio pelos seios e colinas da terra, pelos ventres e crateras de vulcões, pelos olhos e águas de oceanos e, no auge, regressaram à matriz, à falha da Mãe, onde num espasmo encheram o futuro.
Acordei de um sonho, confuso, nu e, mal acabara o vestir atabalhoado e mecânico, apareceu a mulher que me vendou e levou por entre mais algumas palavras mudas da minha história. Percebi que entrava novamente na câmara pois reconhecia a música e sentia mais pessoas a movimentarem-se.
“És tu Jorge?
Sou.”
E o braço de Josef colou-se ao meu. Estávamos de novo em frente à Senhora e as palavras soaram:
“Encontrásteis a luz nas trevas e a vida na morte. O fogo iluminou as vossas almas e fizésteis dele o vosso elemento, mas não vos descuideis, como ele dá vida, dá morte também.
Cobrísteis o futuro, eleitos, podereis voltar sempre de sete em sete para encher de novo a matriz no ciclo da imortalidade.”
As palavras calaram-se e fomos afastados alguns metros. Então, tiraram-nos a venda e pude ver a mesma mulher depor, ritualmente, nas mãos de Josef, a pequena lâmpada que emergira do fundo das águas. Distante, etérea, a detentora da palavra dissolvia-se na luz dos seus paramentos.
Josef encostou o tão precioso objecto ao peito e curvou-se em sinal de agradecimento. Depois seguimos atrás da nossa guia pelos túneis de uma lembrança que nunca saberia se me pertencia a mim, ou às palavras que a teceram.
Após alguns minutos, ao fundo, lobrigámos uma luz, a mulher voltou-se, olhou-nos nos olhos e desapareceu no breu. Nós continuámos em frente e logo um Sol impiedoso nos cegou causando uma nauseante sensação de vertigem. Enquanto nos afazíamos ao rosto do dia a boca da noite fechou-se entregando-nos à dúvida que nos toldava a razão.




Ana Filomena Amaral nasceu em Avintes, Vila Nova de Gaia a 4 de Setembro de 1961.
Licenciou-se em História/Arqueologia pela Faculdade de Letras do Porto, em 1984 e, dois anos depois, iniciou a sua carreira no ensino.
Possui o curso de pós-graduação em Ciências Documentais, da Universidade de Coimbra, e uma longa experiência como intérprete e tradutora de várias línguas europeias, mantendo particular contacto com a língua alemã.
A Coroa de Góis é o seu quarto romance e constitui uma homenagem à palavra. Percorrendo o Concelho de Góis e entrando no ventre da Terra, os protagonistas procuram a Lâmpada de Hanuka, objecto de grande simbologia na religião e mitologia judaicas. Essa busca revela a dimensão metafórica de toda a obra conduzida, efectivamente, pela própria palavra, que está sempre no centro de toda a trama. Palavra misteriosa, secreta, proibida mas, por fim, conquistada e liberta.
A arte é a teia que sustém toda a acção, os acontecimentos e as emoções enredam-se nela concretizando-se, em primeira linha, na própria natureza, nas miniaturas, na música, na pintura e na literatura. Sempre o Verbo, do princípio ao fim, expressão suprema da imortalidade.

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