Escreve João Cortesão no seu livro “Quites, Detalhes e Puyazos”, que “Montemor com as suas lendas e lembranças históricas é capital do Baixo Mondego, zona de gene aficionada com uma dimensão de amores à ‘festa’, tantas vezes traída e maltratada pela maioria de agentes taurinos que para aqui têm migrado, mas que mantém com desmedida perseverança o acreditar sempre no provir de tais artes e tradições”. Mais. “Há povoações nesta região que dão seis e sete espectáculos taurinos, embora menores, durante as suas festas”, continua. Cortesão recorda mesmo uma forma de agarrar os toiros típica da região, “muito peculiar, que consistia em cruzar dois paus embicados no chão, fazendo com que o toiro ali investisse, aguentando de seguida a marrada, para depois dominarem o animal”. Talvez por tudo isto, não surpreenda que os toiros de lide estejam a regressar aos campos do Mondego. Isidro Ricardo é ganadeiro no Baixo Mondego há 6 anos e um dos mais recentes. Fundou, com mais quatro criadores a Associação de Criadores de Toiros de Lide do Baixo Mondego. De fora ficaram apenas duas ganadarias que não se juntaram ao grupo. No dia 24 de Maio ferraram as primeiras vacas desde 1992. Precisamente as de Isidro Ricardo. “Fui por acaso o primeiro. Alguém tinha que começar”, afirma. Mas não terá sido por acaso. O empenho, nestas coisas, como em quase tudo na vida, conta muito. “Tenho 32 vacas ferradas mas a manada é maior”, revela. Só que “algumas já não ferrei porque apercebo-me, apesar do pouco que sei do toureio, que não têm as condições de lide necessárias”. Porque o que se quer ali, no Baixo Mondego, é toiro bravo. Nem mais. Nem menos. “O que temos ali é uma vaca brava, não é uma cruzada de carne”, assegura, referindo-se a uma vaca que depois de uma lide procura o merecido descanso apesar do nervosismo à flor da pele. “Mas se formos ver o bilhete de identidade dela, está lá escrito que é uma cruzada de carne. Acho que é uma injustiça”. Isidro Ricardo defende mesmo que se façam testes de ADN ao gado do Baixo Mondego, para se ver se é ou não bravo. É que, “se não for bravo também não nos convém ter. Somos claros. Não podemos ter aqui um gato e dizer que temos cá uma lebre”. O reconhecimento é difícil, tal como foi difícil a criação da associação. “Tivemos uma luta tremenda para conseguir”, recorda Isidro Ricardo. “Não conseguíamos entrar na criação de toiros”. O processo demorou três anos – “foi o período em que nos associámos, fizemos algumas reuniões até que há dois anos conseguimos realizar a escritura”. O empurrão necessário surgiu com o actual director regional da Agricultura, “dinâmico e disposto a ajudar-nos a levar isto para a frente”, reconhece agradecido o ganadeiro. Ao todo, no Baixo Mondego, as cabeças de gado para ferrar devem rondar as 200. Com estas, garante Isidro Ricardo, “temos condições criadas para poder fazer no Mondego algo diferente do que se fazia até aqui”. Pouco a pouco, este grupo de homens procura recuperar a tradição. “Foi aqui que, vindos do Norte, os toiros se implantaram. Não para tourear mas para lavrar os nossos campos”. O Alentejo e o Ribatejo, afirma Isidro Ricardo, “não tenho dúvidas, têm condições muito superiores para criar toiros de lide”. Mas, assegura, “nós, também por sermos mais pequeninos e com áreas mais condicionados, temos condições para ter os nossos toiros com características próprias”. Não terão as características do toiro daquelas regiões que nasce, vive cinco anos e só vê o maioral. “Os nossos, no Mondego, não são assim. No dia em que nascem vêem quatro ou cinco agricultores a passarem-lhes ao lado. Vivem com eles, mas quando chegam à praça também sabem marrar, melhor ou pior, com mais pata ou com menos pata”. E a prová-lo estão as vacas de António Reis, ganadeiro desde 1973, e que na próxima segunda-feira ferrará cerca de 20 das 70 cabeças que possui. António Reis faz criação para vender e para novilhadas. O amor e o orgulho que tem nos animais perpassa nas palavras e no olhar quando fala deles. “Logo quando eu nasci o meu pai agarrou em mim e foi-me mostrar as vacas que, naquela altura, passavam a noite no pátio da casa”. Mas “não se podem ter toda a vida”, reconhece. “Corri três novilhos na Figueira, saíram espantosos, arrumei-os. Tenho mais cinco vendidos a um amigo de Vilar Formoso que devem seguir já no fim do mês. E tenho ainda um outro para Ponte de Lima, onde já vou há três anos”. E Isidro Ricardo garante: “Que os criadores de toiros de lide do Ribatejo e do Alentejo não tenham problemas. Que colaborem connosco que nós estamos disponíveis para colaborar com eles. Não queremos fazer guerra nem sombra a ninguém”.
MinervaCoimbra edita crónicas de João Cortesão O ‘mundillo’ visto à lupa Não pense o leitor que a autora deste texto é aficionada. Nem sou, nem deixo de ser. Nunca vi uma corrida ao vivo, nem tão pouco no ecrã. E também nunca estive perto de um toiro, desses, de 600 e tal quilos. Deles só sei que não são mansos. Até conhecer o João Cortesão pensava, ingenuamente, que o vermelho ou o rosa choque tinham influência na atitude dos ditos cujos. Só agora percebo que tem tudo a ver com o movimento do capote. Está a rir-se? Sabia por exemplo que há toiros míopes ou com estigmatismo? E que isso tem influência na forma como reagem e avançam aos tropeções, ou não, pela praça em direcção a quem os desafia? Pois eu não. Sou verdadeiramente uma ignorante da ‘festa’ e por isso, felizmente, não tenho culpas. O que, acredite, depois de ler “Quites, Detalhes e Puyazos” é um alívio. Escalpelizar cada um dos agentes da festa, para que cada um dos leitores possa chegar à conclusão de quem são as culpas da crise que a abala, foi o objectivo de João Cortesão ao escrever este conjunto de crónicas que, como referiu e bem Ana Paula Arnaut na sessão lançamento que decorreu no castelo de Montemor-o-Velho, bem poderiam chamar-se “farpas”. Com efeito, em todas as crónicas de “Quites, Detalhes e Puyasos”, chama particular atenção o subtítulo. “Fazendo, regra geral, variações de tom e de cor e, por consequência, de grau, de intensidade, em torno do substantivo culpa, João Cortesão consegue apontar, desde logo, e de modo muito incisivo – numa farpa muito bem aplicada – quer o seu posicionamento (e também as suas afectividades) perante as personagens que constituem matéria das suas crónicas quer a quota-parte de responsabilidade na crise da Festa que julga existir em cada um dos grupos intervenientes”. São vários os exemplos: “mea culpazinha (Aficionadas); mea culpa e mea (Aficionados); culpa e mea (Empresários); grandes culpas (Figueira da Foz versus Sr. Manuel Gonçalves); mea culpa, mea culpa, mea culpa… Ámen (Igreja); tanta culpa (Misericórdias, autarquias e sociedades privadas proprietárias de praças de toiros); mea culpa, sem desculpas (Políticos); alguma culpa (Amadores); quase sem culpas (Forcados); completamente isentos de culpa (Campinos)... Até mesmo as moscas, por mais estranho que possa parecer, têm a sua culpa”. Culpa diferente da dos empresários, da dos directores de corrida, ou dos políticos, é certo, “mas é justamente por isso que varia a intensidade do tom, bem como o grau de mágoa, de desalento ou de ironia com que se fala, ou melhor, se escreve”. Pouco “picante” “A crise na Festa é cíclica”, garante João Cortesão, e tem a ver com o facto de actualmente não existir a chamada “figura de época”. Isto é, “um tipo que encha as praças”. Claro que há bons toureiros em Portugal, mas, recorda João Cortesão, “quando foi a rivalidade Núncio-Simão, enchiam-se as praças. Quando foi a rivalidade Baptista-Luís Miguel e mais tarde Baptista-Zoio, enchiam-se as praças. Quando foi a rivalidade Zoio-Moura, enchiam-se as praças”. Está o problema então na falta destas rivalidades que passavam do particular para o público? Também, mas não só. Actualmente “não há apoderados que cuidem da imagem dos toureiros convenientemente”, garante João Cortesão. Veja-se a propósito o exemplo da imprensa espanhola, principalmente a “cor-de-rosa” ou de coração. Não há semana que não traga o seu toureiro com a sua mulher ou namorada(s), amorosos ou em divórcio litigioso, de compras por Paris ou simplesmente aos beijos nalguma idílica praia tropical, ou em plena lide com a senhora na bancada mostrando cara angustiada ou até escondendo-se atrás do leque. Em Portugal, pelo contrário, não há ‘picante’. “Imagine-se um caso entre um toureiro e uma cantora pimba. Já viu o que era? Toda a gente ia à corrida só para os ver”, refere João Cortesão. É que, assegura, “numa praça de toiros cheia está provado que o número de grandes aficionados nunca ultrapassam os 30%. Depois há os aficionados, simples, que vão ao toiro umas vezes mais outras menos e que são também 30%. E depois há os outros 40%, que são quem faz ganhar dinheiro, e que são o grande público, que se calhar se souberem do caso do toureiro com a cantora vão espreitar”. Em todo o caso, e aproveitando de novo as palavras de Ana Paula Arnaut, “de uma maneira ou de outra, em tom mais ou menos eufórico ou em cores mais ou menos sombrias, a verdade é que este conjunto de textos só podia ter sido escrito por alguém que se preocupa, de facto, com a Festa e com os seus intervenientes; alguém que procura a verdade, ou procura repor a verdade; alguém que, em suma, por isso, queira ver denunciadas injustiças de índole diversa”. |
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