segunda-feira, junho 19, 2006

A imprensa sempre visou formar opinião


Imprensa, opinião pública e censura são expressões chave do último livro de José Tengarrinha que consta de doze estudos sobre história do jornalismo, de 1641 ao Estado Novo. Uma obra que aborda aspectos relevantes da evolução da opinião pública e da censura à imprensa em Portugal, e como a Imprensa visou a formação de uma opinião favorável a determinados objectivos políticos.
Paula Alexandra Almeida

«Imprensa e Opinião Pública em Portugal», da autoria de José Tengarrinha, editado pela MinervaCoimbra, é fruto de “uma investigação séria e qualificada de alguém a quem a história da imprensa muito deve”, afirmou na apresentação da obra Mário Mesquita, jornalista, professor universitário e coordenador da Colecção Minerva Ciências da Comunicação, na qual esta obra se integra.
O pioneirismo da obra de José Tengarrinha prende-se muito com o facto de as ciências da comunicação terem começado a desenvolver-se em Portugal muito em torno da perspectiva científica das ciências da linguagem, tendo a história sido marginalizada, e, por outro lado, os historiadores terem sempre encarado o jornalismo como um tema menor. O livro agora editado preenche as várias lacunas que existem.
Dos doze estudos que o constituem seis visam sobretudo a imprensa, desde o surgimento dos periódicos no início do século XVII até à imprensa nas dinâmicas da sociedade oitocentista. Quatro estudos centram-se de forma explícita na problemática da opinião pública, culminando com a análise da imprensa e opinião pública no Estado Novo. E, finalmente, os dois capítulos restantes incidem sobre as instituições e a acção da censura, naquela que é, para Mário Mesquita, “a primeira visão de conjunto da censura à imprensa em Portugal, abarcando o período que vai das Ordenações Filipinas até ao fim do salazarismo”.
José Tengarrinha descreve “de forma clara, concisa e contextualizada, os institutos e os mecanismos de censura à imprensa”, referiu ainda Mário Mesquita, que enaltece o valor pedagógico que a obra possui, “com vista à plena compreensão de sucessivas ordens censórias ao longo da História de Portugal”.
No final do livro, aliás, José Tengarrinha disponibiliza vários elementos de pesquisa que “poderão ser úteis para os estudiosos da imprensa portuguesa”, incluindo fichas dos vários jornais nacionais que eram editados até 1974 e a análise de “uma importante obra inédita sobre o jornalismo português. O «Dicionário Jornalístico Português» de Augusto Xavier da Silva Pereira”.

Três questões teóricas e metodológicas
Afirmar e tentar provar que os sistemas comunicacionais só ganham dimensão quando em relação com situações e espaços concretos ao longo da evolução das sociedades, isto é, em quadros históricos concretos, foi o grande objectivo deste trabalho. Para o concretizar, José Tengarrinha partiu de três questões teóricas e metodológicas: em primeiro lugar o que é opinião pública, em segundo qual é, em cada momento histórico, a base social da opinião pública e, em terceiro, qual o papel da opinião pública como agente, ou factor, histórico.
“Antes mesmo da formação da opinião pública em Portugal – que constitui o tema do capítulo de abertura – não deveríamos deixar de considerar como, desde tempos recuados, a imprensa visou formar opinião favorável a determinados objectivos políticos, ainda que em círculos limitados da sociedade”, afirma José Tengarrinha. “Neste caso, não se tratava da formação complexa de «espaço de opinião», onde livremente se confrontassem ideias, mas da tentativa de criação de «bloco de opinião nacional» ao serviço de interesses dos governantes”.
É precisamente o que se pode observar com a fundação do primeiro jornal português, recorda, “que procura desenvolver uma «corrente de opinião» favorável à Restauração, contra a que os castelhanos tentavam promover, ou, em 1809, quando o objectivo do Governo era levantar o País contra os invasores franceses”. Também na crise de 1890, salienta ainda o historiador, “são intuitos de defesa da pátria os que movem a imprensa, embora com a diferença fundamental de, então, se tratar de um espaço público autónomo relativamente ao poder”.
A obra aborda a formação da opinião pública na imprensa portuguesa durante o longo período que vai desde 1641 ao Estado Novo, já que para José Tengarrinha “a compreensão destes desenvolvimentos exigia previamente uma visão global, simultaneamente informativa e interpretativa, do quadro censório das folhas informativas, desde as origens em 1627 até ao 25 de Abril de 1974”. E apesar de “ainda hoje vermos como a influência das correntes de opinião sobre a natureza do poder político é muito limitada”, para o autor a imprensa foi sempre, ao longo da história contemporânea, “um dos principais factores de formação da opinião pública crítica”. Processo que, afirma José Tengarrinha, “tem vindo a ser perturbado, quando não adulterado, pelos diversificados e sofisticados meios utilizados pelos diferentes poderes”.
Neste momento em Portugal, como em todo o mundo, salienta José Tengarrinha, “a relação entre o espaço público mediatizado, a sociedade de cidadãos livres, os diferentes poderes dominantes na sociedade e o Estado encontra-se, seguramente, numa das fases mais críticas da história contemporânea”. Para o historiador, “o que foi no passado factor de libertação social e fundamento das sociedades democráticas poderá estar a transformar-se num factor de perversão e corrosão da própria ordem democrática”, o que coloca a necessidade de uma profunda e urgente reflexão.

Dois tipos de opinião pública
José Tengarrinha distingue dois tipos de opinião pública: a oculta e a expressa através dos intervenientes sociais. “A opinião pública oculta é aquela que não se manifesta a não ser, às vezes, quando vota. E deixa todos muito surpreendidos porque nem mesmo em sondagens de opinião essa opinião pública aparece. Aparece geralmente nos que não têm opinião e é, muitas vezes, a que dita verdadeiramente os resultados eleitorais”, afirma. “Nós julgamos o todo pela parte que é visível, mas não é. A parte que é visível é a dos intervenientes, a dos protestos na rua, a dos artigos nos jornais. Essa é a opinião pública dos intervenientes. A visível. Mas há uma massa maior que constitui a opinião pública oculta e que acaba por ditar o rumo da sociedade”.

Preocupações mantêm-se ao longo dos séculos
O capítulo sobre os diversos regimes de censura, desde 1627 até 1974, foi, segundo José Tengarrinha, um trabalho muito duro e prolongado. Com ele o autor pretendeu fundamentalmente mostrar que “é nesta relação de poderes vários com a sociedade e com o Estado que os regimes censórios devem ser analisados. Não numa perspectiva meramente de citação de artigos ou normas censórias, mas com uma interpretação interdisciplinar”.
Esta visão global traz para a luz os principais momentos legais em que a actividade censória evoluiu, mas mais importante do que isso, tenta apreender quais as razões de fundo, as motivações, as coordenadas ideológicas, as finalidades políticas e os objectivos que estavam por detrás do poder ao promulgar determinada legislação. “Isso é que me preocupou mais porque permitiu distinguir nitidamente a forma como ao longo do tempo houve preocupações com a defesa do Estado em determinadas situações, sobretudo no Estado absoluto, com a defesa da doutrina, sobretudo no século XVIII, e com a defesa da sociedade, sobretudo no reinado de Dona Maria I e até chegar ao regime liberal”.
E só depois de ter detectado estas linhas principais que, “com maior ou menor incidência, foram atravessando a actividade censória ao longo da nossa história”, é que José Tengarrinha conclui como “o Estado Novo realiza uma síntese de tudo isto: é a defesa do Estado, é a defesa da doutrina, é a defesa da sociedade”.
Tal como no tempo de Dona Maria I quaisquer notícias que pudessem perturbar a vivência quotidiana e regular eram impedidas, também durante o Estado Novo se cortavam notícias, por exemplo, sobre mortes por cancro. “Ninguém morria de cancro – pudor que ainda hoje se mantém ao dizer-se morte por doença prolongada. Mas nessa altura era preciso preservar a saúde dos cidadãos portugueses”.
Outro exemplo é o de “um desafio de futebol em que o árbitro tinha uma má arbitragem e que os assistentes se revoltavam contra ele e chegavam ao ponto de lhe bater. Até isto era censurado porque era uma manifestação de instabilidade social”. Há, por isso, preocupações que, “embora incidindo sobre factos diferentes, se mantêm ao longo dos vários regimes”.

Censura para além da repressão
Segundo José Tengarrinha, e especificamente em relação ao Estado Novo, “as questões da censura têm sido vistas, a maior parte das vezes, no seu aspecto puramente repressivo, isto é, impeditivo da saída de determinada informação”. Mas aquilo que se pretende mostrar neste livro é que “a preocupação central do Estado Novo foi não apenas controlar a informação no aspecto de repressão, mas também controlá-la no aspecto de construção da opinião”.
E isso, afirma o autor, “julgo ter ficado claro quando faço uma longa relação dos jornais que eram publicados em Portugal, das suas tendências políticas, e da forma como o Estado Novo pretendia influenciar a construção da opinião pública, não apenas nas cidades mais importantes mas por todo o País, através da produção torrencial de artigos e notícias emanadas do Secretariado Nacional de Informação e de outros órgãos, para que pudessem depois ser publicadas nesses jornais”.
Este aspecto construtivo da opinião dentro do Estado Novo “tem sido subalternizado em detrimento do aspecto mais espectacular e mais anedótico da estupidez dos censores, mas é ele que permite detectar as linhas ideológicas fundamentais do regime”, defende José Tengarrinha.
E está enganado quem pensa que este controlo e esta produção eram feitos de forma anárquica e descontrolada. “Eles sabiam muito bem o que pretendiam”, assegura. “Quando se vê que tipo de temas eram ordenados aos articulistas que desenvolvessem para serem distribuídos pelos jornais da província, para que locais da província e em que jornais, temos toda uma teia densíssima que nos conduz à compreensão da impressionante produção desses gabinetes”. Atingiam as centenas de artigos por mês “para contrariar a oculta trama desenvolvida nos bastidores do Estado Novo”, segundo alguns dos relatórios, actualmente na Torre do Tombo, analisados por José Tengarrinha. Eram relatórios feitos por homens do aparelho de Estado salazarista – e depois com Marcelo Caetano – que, andando pela província, analisavam a situação da imprensa portuguesa.
“Há frases nesses relatórios que são exemplares”, recorda. “Como aquela em que Marcelo Caetano refere que «o Estado moderno não pode ser conduzido eficientemente sem uma liderança autoritária, mas esta só é viável quando o povo tem a sensação de participar nela, ao menos pelo seu assentimento formal». É de uma limpidez extraordinária a função que pretendiam atribuir à opinião pública para a sustentação do regime”.
Tanto mais sendo certo que Portugal, ao contrário da Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler, não dispunha de um partido de massas. A União Nacional era um partido de elite. “O próprio achatismo do Salazar nunca permitiria o seu contacto conspurcante com o povo”, afirma José Tengarrinha.
No livro, José Tengarrinha recorda uma «circular urgente» publicada em 1931 pela Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa, com instruções para as suas delegações e enviado aos jornais – texto não divulgado e que reputa da “maior importância para o estudo do Estado Novo” –, na qual são retomadas as 19 directivas «que desde o início têm orientado esta Direcção-Geral nas suas relações com a Imprensa, esclarecendo sobre o justo conceito em que é tido o ‘direito de livre expressão de ideias’ que, entretanto, o bem público condiciona». No documento é denunciada «a influência deletéria que exercem sobre a opinião pública determinados jornais do País quer aplaudindo, ainda que indirecta ou veladamente, a violência e a desordem, a coberto de uma ideologia falseada, quer mantendo um mutismo culposo e absurdo em face de actos que a Nação repudia e cujas consequências só em lágrimas de sangue podem ser avaliadas». Assim, continua José Tengarrinha, o apoio ao regime devia ser demonstrado «de forma insofismável», ameaçando-se os jornais que não seguissem esta orientação. Tão bem definiram a estratégia do poder quanto à censura aos jornais que aquelas directivas se mantiveram até 1968 como guia ideológico da propaganda e da defesa do Estado Novo. Em Julho do ano seguinte, as «Instruções Gerais» da Direcção-Geral dos Serviços de Censura voltam a publicar os «Fins» da censura, as «publicações abrangidas» (isto é, que estavam sujeitas a censura prévia) e as anteriores «Directivas», finalizando com novas «Instruções» em que, de acordo com as directivas, estavam detalhadamente especificados os 23 tipos de informação que não eram permitidos.
A estratégia de difusão de textos de opinião abrangia inclusive as agências de informação que regularmente emitiam aqueles artigos para serem publicados por jornais de todo o País. E “só com a revolução democrática do 25 de Abril de 1974”, conclui José Tengarrinha, “terminou definitivamente a censura prévia e a arbitrária repressão administrativa à imprensa que marcaram quase permanentemente cerca de três séculos e meio da história portuguesa”.

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Quem é...
Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, José Tengarrinha nasceu em Portimão, em 1932. Ganhou o Prémio da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto em 1962. Criou, dirigiu e leccionou mestrados, em Portugal, nas áreas da História Contemporânea, História Moderna, História do Brasil, História da Imprensa Periódica, História Regional e Local e Cultura e Formação Autárquica, tendo orientado, nessas áreas, numerosas teses de mestrado e doutoramento. Leccionou em cursos e seminários de doutoramento em universidades estrangeiras como Florença, Pescara, Bolonha, Paris VII, Nantes, Valladolid, Bilbao, Autónoma de Barcelona, Carlos III de Madrid, Sevilha, Canárias e École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, entre outras. Foi professor
visitante da Universidade de São Paulo para cursos de pós-graduação, em 1997.
Tem publicadas numerosas obras em Portugal, no domínio da História e das Ciências Sociais, com destaque para «Movimentos Populares Agrários em Portugal – 1750-1825» (tese de doutoramento), 2 vols., 1994, e «História do Governo Civil de Lisboa», 2 vols., 2002, e, no Brasil, «A Historiografia Portuguesa, Hoje», 1999, «Historiografia Luso-Brasileira Contemporânea», 1999, e «História de Portugal», 2ª ed. 2001. Da sua vasta bibliografia sobre a história da imprensa portuguesa refira-se «História da Imprensa Periódica Portuguesa», 2ª ed. 1989 e «Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828», 1993.
Está actualmente a preparar uma nova versão, actualizada e alargada à actualidade, da História da Imprensa Periódica Portuguesa.

No das Artes das Letras d'O Primeiro de Janeiro, hoje

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