quarta-feira, maio 31, 2006

Festa "brava" em Montemor-o-Velho



As Edições MinervaCoimbra e a Câmara Municipal de Montemor-o-Velho promoveram no passado sábado o lançamento do livro de crónicas taurinas QUITES, DETALHES E PUYAZOS de João Cortesão.

A iniciativa contou com a presença de cerca de 250 pessoas, e além da apresentação do livro por Ana Paula Arnaut, incluiu ainda a lide de uma novilha por um jovem toureiro de Santarém, a degustação de sabores da Gândara e do Baixo Mondego, com maior incidência no concelho de Montemor-o-Velho, rematando as comemorações, noite fora, com "detalhes" de fado, cante hondo e guitarra clássica.

Além da reportagem fotográfica que aqui deixamos, ficam também excertos do texto de Ana Paula Arnaut sobre a obra de João Cortesão.






Na Advertência a Uma Campanha Alegre (de 1890-1891, resultado da refundição de textos publicados cerca de 20 anos antes n’As Farpas), Eça de Queirós, ao mesmo tempo que se interroga sobre a actualidade da crítica então feita, dá conta do objectivo que, em conjunto com Ramalho Ortigão, o havia levado a participar em tal projecto de escrita. Assim, segundo afirma, ele e Ramalho, “convencidos (…) que a tolice tem cabeça de touro,” decidiram “farpear até à morte a alimária pesada e temerosa”. Desta forma, na morte à tolice que se propunha levar a cabo, farpeia, em finas tonalidades de inteligência e de ironia as várias partes do cachaço de uma sociedade, de um País, que, citando o autor, “perdeu a inteligência e a consciência moral”. Não escapam, por conseguinte, à vertente crítica queirosiana (numa actualidade surpreendente e fascinante), aspectos como a realeza, a política nacional, o jornalismo, a literatura, o teatro, a família (o papel do homem e da mulher), etc, etc…






Organizado em múltiplos capítulos respeitantes ao universo, ao mundo, da tourada, Quites, Detalhes e Puyazos parece querer cumprir a mesma função de, pela ironia e pelo riso (um “riso que peleja”), farpear o cachaço dessa alimária – agora taurina – que, como sabemos, tem dado azo a reacções de espécie variada, num espectro que, seguramente, se estende do amor incondicional ao ódio visceral (e muitas vezes pouco justificado) dos anti-aficionados. A ilustrar o grupo destes últimos, e deixando de lado, entre outros aspectos, as recentes e bem conhecidas polémicas sobre touradas e os touros de morte em Portugal, relembro, a título de curiosidade arqueológica, que é possível encontrar no reinado de D. Maria II um Decreto ( nº 229 do Diário do Governo, 1836) que, oficialmente, põe um fim efectivo no popular espectáculo: Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas, bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de ora em diante fiquem proibidas em todo o reino as corridas de touros.





A popularidade das corridas de touros, normalmente associadas à ideia de marialvismo, é ainda facultada por menções feitas no âmbito de obras de outros autores. Eça de Queirós retoma/refere a “Última corrida…” em “Singularidades de uma rapariga loura” (1874, publicado postumamente em Contos, 1902) e, em Os Maias, por exemplo, e apesar de não ser narrado nenhum episódio relativo a uma tourada, já que a preferência do narrador se desvia para o relato de uma corrida de cavalos, existem comentários directos, e também sugestões indirectas, que apontam para o facto de este não ser um assunto ausente do romance publicado em 1888. Existe, além disso, um manuscrito (nº 258) que aponta para a hipótese de Eça ter ponderado a inclusão neste romance de uma corrida de toiros. Bem concreto é o facto de, no capítulo X, Afonso da Maia observar que “O verdadeiro patriotismo […] seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada”, acrescentando que, “Cada raça possui o seu sport próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, água fresca, e foguetes”.





Em época bem mais recente, no universo narrativo de As Noites Afluentes (2001), António Arnaut faz radicar, ficcionalmente (ou, se calhar, não tão ficcionalmente quanto isso… quem poderá ter a certeza?), a origem remota da tradição nos idos tempos dos lusitanos e do deus Endovélico, a quem, por costume, se sacrificavam touros. Segundo reza o conto deste autor, o Sumo-Sacerdote lusitano preparava-se para, ritualmente, proceder ao sacrifício do touro quando este, aproveitando “uma indecisão das correias que o prendiam”, arremete “contra o oficiante”, matando-o. Perante isto, o chefe lusitano terá dito: “A partir de hoje e para sempre, quando um da tua raça vir a cor deste sangue, há-de percorrer-lhe o corpo um fogo de espadas vingativas. E uma espada apagará a tua rebeldia!”. E, de seguida, “o próprio chefe tomou a espada e enterrou-a, de um só golpe, no coração dadivoso do touro”.






Voltemos, todavia, e sem mais delongas, ao nosso Quites, Detalhes e Puyazos, onde as pequenas histórias relativas ao universo de touradas, touros, toureiros e outros ingredientes e cenários afins se consubstanciam, como acima disse, numa tonalidade crítica e humorística que não passa despercebida, que não pode passar despercebida, nem mesmo ao mais ingénuo e desconhecedor dos leitores.





Intercaladas por muito elucidativas e às vezes acintosas ilustrações da autoria de Gonçalo Almeida e por comentários-testemunhos de vários familiares, amigos e amigas do autor – onde ficamos a saber da enorme estima que todos lhe dedicam, de algumas das suas vivências, do seu entusiasmo pelo espectáculo taurino, ou, ainda, entre outros dados, do embrião deste seu projecto de escrita (o convite feito para participar no “Farpas”, veja-se o testemunho de Miguel Alvarenga) –, as mais de três dezenas de crónicas do livro em apreço não poupam, creio, nenhum ponto do cachaço da alimária, isto, é, da “festa brava”.




Se bem que, julgo, já quase todos aqui presentes conheçam a larga maioria dos textos, não posso deixar de referir, a propósito, alguns excertos de várias crónicas. Por motivos óbvios, interessou-me particularmente a primeira delas, intitulada “Aficionadas/Mea culpazinha…”. Nesta, depois de uns breves três parágrafos em que dá conta da existência de um grupo de mulheres, de representatividade reduzida, que, de facto, aprecia o espectáculo e sabe das coisas taurinas, João Cortesão propõe uma possível divisão do público feminino em subgrupos que apresentam, como veremos de seguida, características variadas. A tipologia sugerida subdivide-se, pois, em: aficionadas de contacto ‘decorativo-passivas, aficionadas do lado do boi ‘falsas sofredoras’, aficionadas de segunda intenção, aficionadas festeiras, aficionadas descascadas, aficionadas familiares e, finalmente, aficionadas íntegras.




Não se pense, contudo, que eles, os aficionados, escapam ao olhar criticamente perscrutador de João Cortesão. Dando conta da sua quota-parte de responsabilidade na crise que envolve as corridas de touros, estes são divididos em aficionados bonzões, doentios, PH7 ‘tipo Melhoral’ e marretas. Sendo embora a tipologia utilizada bastante elucidativa, cito a definição das duas últimas categorias.



Nesta, como na crónica anterior, ou, para o efeito, em todas as crónicas de Quites, Detalhes e Puyasos, chama particular atenção o subtítulo. Com efeito, fazendo, regra geral, variações de tom e de cor e, por consequência, de grau, de intensidade, em torno do substantivo culpa, João Cortesão consegue apontar, desde logo, e de modo muito incisivo – numa farpa muito bem aplicada – quer o seu posicionamento (e também as suas afectividades) perante as personagens que constituem matéria das suas crónicas quer a quota-parte de responsabilidade na crise da Festa que julga existir em cada um dos grupos intervenientes. Exemplifico: mea culpazinha (Aficionadas); mea culpa e mea (Aficionados); culpa e mea (Empresários); grandes culpas (Figueira da Foz versus Sr. Manuel Gonçalves); mea culpa, mea culpa, mea culpa… Ámen (Igreja); tanta culpa (Misericórdias, autarquias e sociedades privadas proprietárias de praças de toiros); mea culpa, sem desculpas (Políticos); alguma culpa (Amadores); quase sem culpas (Forcados); completamente isentos de culpa (Campinos) …



Até mesmo as moscas, por mais estranho que possa parecer, têm a sua culpa. Culpa diferente da dos empresários, da dos directores de corrida, ou dos políticos têm estas moscas, é certo, mas é justamente por isso que varia a intensidade do tom, bem como o grau de mágoa, de desalento ou de ironia com que se fala, ou melhor, se escreve.
Em todo o caso, de uma maneira ou de outra, em tom mais ou menos eufórico ou em cores mais ou menos sombrias, a verdade é que este conjunto de textos só podia ter sido escrito por alguém que se preocupa, de facto, com A FESTA e com os seus intervenientes; alguém que procura a verdade, ou procura repor a verdade; alguém que, em suma, por isso, queira ver denunciadas injustiças de índole diversa.





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